sexta-feira, 22 de setembro de 2017

Os gestos e as instituições | José de Souza Martins

- Valor Econômico / Eu &Fim de Semana

Numa noite do fim de julho de 1992, Luiz Inácio Lula da Silva, líder sindical e ex-operário metalúrgico, era o convidado para falar aos participantes do II Congresso de História da Região do Grande ABC, em São Paulo. Foi no salão paroquial da Igreja Matriz de São Bernardo do Campo. Um dos temas do congresso era o da memória dos processos de trabalho nas fábricas da região, preservada em gestos e cacoetes. Muitos antigos operários foram convidados a falar nos três dias do congresso. Operário em duas daquelas fábricas, desde os 11 anos de idade, eu participava do evento para expor, em detalhe, minha interação com as máquinas e ferramentas com que havia trabalhado.

Os participantes do congresso, homens e mulheres, que haviam começado a trabalhar ainda crianças, tinham aguda memória de cada movimento, de quais eram as máquinas e de como as operavam, desde a entrada da matéria-prima no processo de produção até a saída do produto final. Muitos, como Lula, e também eu, ficaram com marcas e sequelas no corpo em consequência de seu uso como ferramenta e extensão da máquina.

Lula também tinha sua história e a narrou. Num certo momento, a propósito das privações culturais de que a condição operária é feita, disse que "o operário não sabe nem comer". A frase me lembrava de uma das mais constrangedoras experiências pelas quais eu mesmo passara em minha experiência fabril. Referia-se ele a episódio que vivera quando já sindicalista de projeção internacional. Numa viagem à Europa, fora convidado para jantar em um palácio, se não me engano com François Mitterrand. Num certo momento, os que serviam à mesa interromperam o serviço. Até que um membro da caravana sussurrou-lhe ao ouvido que deveria colocar os talheres no prato para indicar que havia terminado. Isso feito, o jantar foi retomado.

Lula referia-se a códigos de etiqueta e civilidade, que não eram conhecidos dos trabalhadores. Até porque a refeição operária de então era no geral na marmita e, mesmo à mesa, reduzia-se a um único prato onde eram misturados todos os alimentos: como salada, arroz, feijão com farinha, um bife ou ovo frito. Talher era a colher, que tinha as funções de garfo e faca. Para muita gente originária da roça, como ele e eu, comer era o ato de abastecer de combustível o corpo de trabalho. No refeitório da fábrica, também eu passei pela humilhação de ser advertido por não conhecer os gestos do comportamento à mesa.

O tempo passa e, ao mudarmos de situação social, os constrangimentos vão nos ensinando as condutas adequadas às nossas novas e diferentes circunstâncias. Como para Lula, e para mim, as circunstâncias que não são do nosso mundo nem da nossa classe e do nosso modo originário de compreender e viver em sociedade. Cada nova circunstância pedindo a ressocialização do trabalhador.

Mesmo naqueles de nós que percorreram extensamente o trajeto das experiências sociais mais diversificadas, a ressocialização não desfaz nem anula tudo o que já é sabido nem suprime gestos, falas, sotaques de antes. Os que têm consciência do desajuste policiam-se todo o tempo para não cometer deslizes.

Um pequeno incidente ocorrido entre Lula e a procuradora que o interrogava, na semana passada, quanto ao tratamento correto que ele deveria dar-lhe nas respostas, é dessas ocorrências reveladoras do mundo que perdura na personalidade dos atores. Ela não falava em nome próprio, mas em nome do Ministério Público. Portanto, não era ela a pessoa a quem ele pudesse se dirigir chamando-a de "querida", como fazia, e chamando-lhe à atenção em vários momentos como se fosse ela uma subordinada passível de repreensão.

Sendo ele pessoa de permanente exposição pública e obrigado ao que, em seu caso, são as performances e dissimulações que acobertam as referências profundas de sua formação popular, esse incidente poderá ser ressaltado e interpretado, mesmo por aqueles que ainda o apoiam, como expressão de uma concepção reacionária da condição feminina.

São tantas e crescentes as expressões grosseiras do processo político brasileiro que já não prestamos atenção na linguagem imprópria ou no gesto inadequado deste ou daquele político. Não estranhamos a grosseria de deputados e senadores amontoados diante da mesa e da tribuna, falando em voz alta e ao mesmo tempo, enquanto alguém faz um discurso útil ou inútil.

Um verdadeiro batalhão de políticos brasileiros, tradicionalmente no fundo do palco ou mesmo no bastidor da política, que os acidentes da história recente chamaram à boca da cena, nos gestos e nos deslizes mostram que não são do ramo. Os deslizes que cometem são desconstrutivos das instituições que deveriam impessoalmente personificar.
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José de Souza Martins é sociólogo, membro da Academia Paulista de Letras e autor de “Uma Sociologia da Vida Cotidiana” (Contexto), dentre outros.

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