segunda-feira, 9 de outubro de 2017

Bodes, vacas e laranjas | Fernando Limongi

- Valor Econômico

Há espaço de sobra para consequências não esperadas

A novela da reforma política chegou ao fim. Foi aprovada na correria, aos quarenta e cinco do segundo tempo. Um atraso a mais e não valeria para a eleição de 2018. Na última hora, o proverbial bode foi posto no centro da sala. A reação foi imediata e a tentativa não tão velada de censura ganhou as manchetes. O presidente Michel Temer, sempre antenado com os interesses gerais, respondeu rápido, vetando a medida. O bode, como na piada, foi retirado da sala. O FEFC sobreviveu. Firme e forte, veio para ficar. Os políticos aprovaram a única coisa que lhes interessava aprovar, a sua reforma, ou melhor, a contrarreforma.

FEFC é a sigla de Fundo Especial de Financiamento de Campanha. Políticos passam a contar com uma terceira mãozinha do Estado para financiar suas atividades. Já tinham o Fundo Partidário para pagar despesas gerais e o horário da propaganda eleitoral no rádio e na televisão já era gratuito. Trata-se, portanto, de uma adição. Com o FEFC, políticos terão dinheiro público para financiar suas campanhas.

Pode-se até chamar de "reforma politica" as mudanças aprovadas, uma emenda constitucional e duas leis, mas a reforma para valer, para o bem ou para ou mal, já havia sido aprovada. O que o Congresso aprovou na semana passada e o presidente sancionou com vetos foi uma reação, uma adaptação à nova realidade criada pela Lava-Jato e pela decisão do Supremo Tribunal Federal, que proibiu contribuições de pessoas jurídicas aos partidos. Essas medidas é que de fato mudaram radicalmente os parâmetros da atividade política. Das duas, provavelmente, a mais profunda tenha sido a retirada forçada dos financiadores tradicionais.

Em razão da Lava-Jato, as empreiteiras foram as primeiras a serem alijadas deste mercado. A J&F caiu recentemente, depois de participar ativamente da operação impedimento Dilma para ver se salvava o esquema. Com as gravações do Jaburu, seguiu o caminho de suas antigas parceiras em direção à carceragem.

A necessidade de encontrar fundos alternativos para financiar campanhas, portanto, viria de qualquer jeito, com ou sem a decisão do Supremo. Acostumados a dinheiro fácil, os candidatos, como dependentes químicos, teriam que encontrar um substituto. A primeira tentativa, mais pomposa no nome, Fundo Especial de Desenvolvimento da Democracia (FDD), mas direta na origem dos recursos, não vingou. Foi preciso recorrer ao engenho do sempre eficaz senador Romero Jucá (PMDB-RR) para dourar a pílula e criar o FEFC, cuja composição se daria pela transposição de recursos que já caberiam aos políticos, como os da propaganda anual dos partidos e as emendas das bancadas estaduais. O truque funcionou. A transposição de verbas não pareceu tão impopular, pois o FEFC, como declarou o presidente do Senado, Eunício de Oliveira (PMDB-CE), não recorre a "dinheiro novo", isto é, não compete com verbas para a saúde ou educação. O dinheiro usado já caberia aos políticos. Resumo da ópera: quem nasceu Cândido, não chega a Jucá.

Para a classe política, em realidade, tudo o que foi discutido e aprovado, da cláusula de desempenho à adoção do sistema distrital-misto, era e é secundário. O essencial, o inadiável, era obter os equivalentes funcionais às empreiteiras e à J&F: dinheiro fácil para bancar suas campanhas.

A improvisação beirou as raias da irresponsabilidade. Para atender o prazo constitucional, a Câmara aprovou uma lei vinda do Senado, enquanto os senadores aprovavam outra sobre a mesma matéria, que tramitou na direção oposta. A compatibilização das duas leis, complementares em alguns pontos, mas contraditórias em outros, ficou para Temer.

A sanção com veto presidencial era, portanto, parte do plano, viria com ou sem o bode posto na sala. Segundo algumas versões, um cochilo do Senado, que teria deixado de eliminar o parágrafo que regulava as contribuições dos próprios candidatos, complicou a tarefa deixada a Temer, forçando uma reunião noturna no Jaburu para acertar detalhes. O presidente do Senado faltou ao encontro, mas compareceram outros três presidentes, o da República, o da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), e o do Tribunal Superior Eleitoral, Gilmar Mendes. Resultado: boa parte das duas leis foi vetada, criando buracos negros e contradições com a legislação vigente.

Duas novidades sobreviveram à caneta de Temer: a possibilidade de arrecadação prévia por crowdfunding e o mencionado FEFC. A "vaquinha eletrônica" pode ser montada antes mesmo da oficialização das chapas, antecipando a competição pela viabilização de candidaturas. Além disto, não se deve descartar que a "vaca" venha a ser alimentada por laranjas.

Quanto ao FEFC, foi mantido, mas a regulação sobre sua distribuição entre candidaturas no interior do mesmo partido foi para o espaço. Depois de vetada, a lei diz apenas que os recursos "ficarão à disposição do partido político somente após a definição de critérios para a sua distribuição, os quais, aprovados pela maioria absoluta dos membros do órgão de direção executiva nacional do partido, serão divulgados publicamente". Trocando em miúdos: cada partido faz o que bem entender com o quinhão que lhe couber.

Com este arranjo, difícil saber quais os critérios que cada partido vai adotar para distribuir internamente seus recursos pelos Estados e candidaturas. Para os maiores partidos, não será simples encontrar a distribuição ideal. Ter muitos candidatos pode levar à dispersão de recursos. Além disto, partidos com candidatos a presidente e a governos estaduais terão menos recursos para parlamentares. Já os menores, com poucos candidatos e sem participar de eleições executivas, poderão acabar com mais recursos públicos per capita, facilitando que vençam a barreira introduzida pela cláusula de desempenho aprovada.

Qualquer previsão sobre os efeitos destas modificações é pura especulação. Há espaço de sobra para consequências não esperadas e adaptações "criativas". O verdadeiro bode, talvez, tenha sido deixado na sala, em companhia de vacas e laranjas.
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Fernando Limongi é professor do DCP/USP e pesquisador do Cebrap.

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