quinta-feira, 5 de outubro de 2017

Derrota da política | Demétrio Magnoli

- O Globo

Governo espanhol não se entregou à persuasão de catalães, chamando-os a boicotar o plebiscito ilegal, apesar de pesquisas indicarem que secessão contava com menos de 45% de apoio

No domingo passado, o plebiscito separatista catalão alcançou o primeiro lugar entre os rótulos empregados por contas de Twitter ligadas ao Kremlin. O pico verificou-se após um mês de intensa atividade centrada no tema. Os perfis em inglês dedicados à guerra da informação russa anunciaram, exultantes, uma nova etapa da “crise da democracia ocidental” e o iminente colapso da União Europeia. Enquanto a polícia espanhola entrava em confronto com os manifestantes, a expressão “plebiscito catalão” misturava-se às palavras “Franco” e “franquismo”. Na Catalunha, o único vitorioso foi Vladimir Putin.

“Fake news”: o nacionalismo catalão pratica, há quase duas décadas, o esporte preferido pelo Kremlin. Na esfera da narrativa histórica, a Guerra da Sucessão Espanhola (1702-14), um conflito dinástico entre as casas de Bourbon e de Habsburgo, é reescrita como uma guerra popular de secessão da Catalunha — e seu resultado como início da dominação espanhola sobre a nação catalã. No campo político, a Espanha atual é descrita como uma potência autoritária e opressiva: ignora-se tanto a Constituição democrática de 1978 quanto os estatutos de autonomia regional que dela resultaram. No terreno econômico, acusa-se ritualmente o governo central de explorar a riqueza catalã (“a Espanha nos rouba”), como se o nível de transferências fiscais da Catalunha não estivesse em linha com o de regiões prósperas de outros países europeus.

De Jordi Pujol a Carles Puigdemont, passando por Artur Mas, o principal partido catalão conservou a hegemonia regional às custas da permanente agitação nacionalista. O discurso antiespanhol serviu para desviar a crítica pública dos governos regionais para o governo de Madri. O jogo populista abateu, um a um, os líderes nacionalistas conservadores e exigiu uma crescente radicalização rumo ao secessionismo. Pujol falava em “soberania”, mas contentava-se com o alargamento da autonomia. Artur Mas prometia um plebiscito de secessão, porém acabava curvando-se aos vetos do Tribunal Constitucional. Carente de reservas de credibilidade, Puigdemont rompeu as fronteiras legais, engajando-se na aventura separatista.

No percurso, os nacionalistas conservadores assistiram à erosão de sua base eleitoral, até o ponto em que optaram por uma aliança com a esquerda nacionalista. Puigdemont é o líder dessa frente, o Junts pel Sí (Juntos pelo Sim), que conta com o suporte externo da CUP (Candidatura Unitária Popular), um partido de extrema-esquerda. O nacionalismo conservador converteu-se, assim, em refém da esquerda secessionista, pois nada une os componentes da coligação, exceto a bandeira do separatismo. Fim da linha: o plebiscito marca o apogeu da radicalização e, consequentemente, a crise da incongruente aliança.

Mariano Rajoy, chefe do governo espanhol, classificou o plebiscito como um “simulacro de democracia”. De fato, a convocatória viola a Constituição e o Estatuto da Catalunha, que proíbem plebiscitos regionais unilaterais, e a ausência de definição de quórum mínimo transformou o plebiscito em ato farsesco pelo qual a separação pode ser decidida por uma minoria do eleitorado. Mas Rajoy abdicou da política, confiando o destino à polícia. O governo conservador espanhol não se entregou à persuasão da opinião pública catalã, chamando-a a boicotar o plebiscito ilegal, apesar de as pesquisas indicarem que a secessão contava com menos de 45% de apoio. Também não experimentou a via da negociação com os partidos catalães avessos ao nacionalismo para sugerir aperfeiçoamentos no estatuto autonômico. As cenas de repressão uniram a Catalunha em repúdio ao governo central e ofereceram um balão de oxigênio à frente separatista.

A política perdeu, e não só à direita. O Podemos, maior partido da esquerda espanhola, pronunciou-se timidamente contra o separatismo mas clamou, em altos brados, pelo “direito a decidir” da Catalunha, esquecendo-se de que a Constituição violada foi aprovada em referendo por todos os espanhóis, inclusive os catalães. A prefeita de Barcelona, Ada Colau, uma das líderes do Podemos, depositou um voto em branco no plebiscito ilegal. No imaginário romântico da esquerda, as cenas históricas da resistência da Catalunha revolucionária na Guerra Civil Espanhola (1936-39) confundem-se com a atual mobilização separatista. Tudo se passa como se as agências russas tivessem razão ao colar a palavra “franquismo” à Espanha democrática de hoje.

Os demagogos nacionalistas adiam a hora da verdade convocando protestos contra a repressão policial, mas a fantasia de revolucionário catalão já não cabe em Puigdemont. O chefe do governo da Catalunha ensaiou um recuo, solicitando a mediação europeia. A Comissão Europeia rejeitou o pedido, esclarecendo que não interferirá em “assunto interno” da Espanha e lembrando o imperativo de respeito à Constituição. Depois, sob intensa pressão de seus aliados circunstanciais da esquerda, Puigdemont prometeu encaminhar ao Parlamento regional uma declaração de independência. Putin venceu sem disparar um tiro, graças ao “fogo amigo” espanhol.

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Demétrio Magnoli é sociólogo

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