sexta-feira, 27 de outubro de 2017

Escravidão, hoje | José de Souza Martins

- Valor Econômico/ Eu &Fim de Semana

A portaria do governo brasileiro que pretende redefinir o conceito e a teoria da escravidão, para atenuar a justa e necessária fiscalização e repressão ao escravismo entre nós, fere a Constituição, as leis e as convenções internacionais de que o país é signatário. Ela nos envergonha porque nos define como retrógrados. É um ataque a nossas conquistas históricas relativas à liberdade pessoal e também à emancipação da pessoa das iniquidades que nos afligem desde dom Manuel I.

Não se passaram muitos anos para que os nativos, definidos por Pero Vaz de Caminha como pardos, fossem submetidos a um cativeiro peculiar que ganhará nome jurídico na condição de índio administrado para ser convertido ao catolicismo e pagar a conversão com a escravidão. Esse cativeiro, formalmente, será abolido em 1757. Serão transformados em agregados, os nossos servos da gleba.

Com a escravidão indígena, convivera a escravidão negra, dos cativos importados da África, que diferentemente dos índios, eram escravos-mercadoria. Capturados por nativos inimigos e vendidos aos traficantes brancos, vieram nas Américas nutrir com seu trabalho, sob o regime da chibata, a acumulação originária do capitalismo que nascia na Europa. Era a escravidão que terminará em 1888 por iniciativa de homens lúcidos, como Joaquim Nabuco e Antônio da Silva Prado. A escravidão escravizava todo o país.

A criminalidade da escravidão, retrógrada e insidiosa, no entanto, persiste. Antes mesmo do fim da escravidão negra, já havia surgido entre nós a escravidão por dívida. Euclides da Cunha, em obra póstuma, "À Margem da História", de 1909, mesmo ano de sua morte, narra o seu florescimento nos seringais da Amazônia e descreve seus mecanismos. Ele a conhecera diretamente quando fez parte da comissão de demarcação de fronteiras no Alto Purus.

Em meados dos anos 1970, as jornalistas inglesas Sue Branford e Oriel Glock, com base nas fotografias aéreas de regiões de mata devastada da Amazônia e no número médio de peões necessários para derrubar um alqueire de mata para abrir novas fazendas, estimaram que ali havia de 200 mil a 400 mil trabalhadores escravizados. Remanescentes do escravismo persistem residualmente em diferentes aspectos das relações de trabalho.

Em 1995, o governo brasileiro, em discurso radiofônico do presidente Fernando Henrique Cardoso, reconheceu que havia prática de trabalho escravo no país e anunciou medidas para combatê-la. Criou o Grupo Executivo de Repressão ao Trabalho Forçado (Gertraf) e o Grupo Móvel da Fiscalização, acionados diretamente de Brasília e protegidos pelo sigilo. A corajosa ação do Grupo Móvel reduziu o número de casos a cerca de 12 mil em 2001.

Por essa época, sinais de recrudescimento da escravidão, que se espalhara para outras regiões brasileiras e até na indústria de confecções na cidade de São Paulo, levaram à criação de comissão especial no Ministério da Justiça e na Secretaria de Direitos Humanos que se incumbiria de rever a legislação e de propor novas medidas de combate à violação dos direitos sociais e trabalhistas.

A comissão, que presidi, constituída de representantes de vários órgãos do Estado brasileiro, produziu o Plano Nacional de Combate ao Trabalho Infantil e Escravo, entregue ao presidente da República em outubro de 2002 para o crivo da assessoria jurídica da Presidência e legado ao novo presidente. A desproporcional influência do agronegócio na estrutura de poder, a partir do governo Luiz Inácio, bloqueou a aprovação, no Congresso, de várias medidas fundamentais para reverter a tendência à barbárie nas relações de trabalho.

A escravidão tem se mantido forte e se expandido em todo o mundo, especialmente na Ásia e na África. Mas há registros de episódios relativamente recentes na Europa e nos Estados Unidos. São hoje 40,3 milhões de escravos no mundo, dos quais 25 milhões em trabalho forçado. Os lucros da escravidão são poderosos. Gente está virando mercadoria. Há pouco mais de um ano, um traficante tentava vender dois escravos bolivianos por US$ 1 mil cada um na própria feira do Pari, praticamente no centro da cidade de São Paulo. Foi denunciado e preso.

No caso brasileiro, a maioria das pessoas escravizadas só percebe que foi reduzida ao cativeiro quando descobre que já não é dona de si mesma e se vê em face de ostensivas manifestações de repressão física ou psicológica. A mudança nas regras interdita a ação dos fiscais do trabalho, protege quem escraviza, anula direitos das vítimas e não premia os empregadores que cumprem as leis. Sobretudo quem reconhece que a emancipação dos seres humanos de qualquer forma de sujeição liberta a todos e não só quem padece a degradação do cativeiro.
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José de Souza Martins é sociólogo. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de “Fronteira – A Degradação do Outro nos Confins do Humano” (Contexto).

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