sexta-feira, 13 de outubro de 2017

Gente comum | José de Souza Martins

- Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

O silêncio que cai sobre o túmulo da professora Helley Abreu Batista, de 43 anos, no cemitério São Lucas, em Janaúba, Minas Gerais, é um silêncio que não apaga sua coragem e seu heroísmo da memória das 600 pessoas, dentre os 71 mil habitantes do município, que acompanharam seu enterro, cantando "Segura na mão de Deus e vá". Levavam rosas brancas quando a conduziram num caixão branco, como as crianças que morreram em consequência do incêndio criminoso na creche municipal que frequentavam. Cor simbólica da piedade popular, espécie de canonização para que os mortos permaneçam no coração dos que lhes reconhecem a elevação acima da condição humana, pela generosidade, pela coragem e pelo desprendimento.

Helley deixou três filhos, de 1, 11 e 13 anos de idade. Ela não pensou em si mesma. Pensou nas crianças em perigo, atracou-se com o incendiário para protegê-las. Teve 90% do corpo queimado.

No Brasil, é raro perpetuar e reverenciar a memória dos que se dedicaram ao semelhante, aos simples e desvalidos. Não há monumentos a pessoas assim. Temos um "Livro dos Heróis da Pátria", depositado no Panteão da Pátria e da Liberdade, em Brasília. Dele constam 21 nomes, apenas três mulheres. Pouca gente para um país tão grande. Consta dom Pedro I, mas não consta dom Pedro II, que deixado pelos pais no Brasil, aos 5 anos de idade, quando se retiraram para Portugal, foi um autêntico filho da nação brasileira, criado pelos regentes do Império, para, com seu exílio na própria pátria, assegurar simbolicamente a unidade nacional. Há no panteão pouquíssimas pessoas comuns. Nenhuma por atos edificantes de explícito devotamento ao próximo, como o de Helley Batista. Ainda que não sejam raras em nosso grande mundo de anônimos as histórias dos que ofereceram a vida pela vida dos outros.

É difícil encontrar pessoas comuns no rol das gentes que permaneceram na memória coletiva como seres aureolados pela gratidão da nação. Em nossa história social, não há lugar para o reconhecimento da condição humana e dos méritos dos que nasceram condenados à invisibilidade e à carência de merecimentos, mesmo que os tenham.

Nossa cultura popular conforma-se com a subalternidade dos simples, os despojados de privilégios de nascença. A consciência de nossas diferenças me foi exposta por duas meninas de cerca de 10 anos de idade há alguns anos, na Vila de Paranapiacaba, no Alto da Serra, em São Paulo. É antiga vila operária da estrada de ferro Santos - Jundiaí. Com amigos, tomava fotos daquele belo cenário para fotografias em preto e branco. As duas começaram a nos acompanhar com curiosidade.

De repente, a menor delas me disse: "Sabe, moço, aqui na vila não tem gente rica, só gente normal. O pai de minha amiga é rico, mas minha amiga é normal". É como se fôssemos uma sociedade dividida, em que os normais não contam.

Os canonizadores de nomes de brasileiros que tem merecido justo arrolamento no "Livro dos Heróis da Pátria" são membros do Parlamento. Nele colocam nomes de pessoas de méritos indiscutíveis e também nomes de pessoas que não simbolizam propriamente a pátria, quando muito personalidades de grupos sociais restritos. Os parlamentares seguem uma errática concepção de pátria e de herói. Já os brasileiros sepultados no Monumento aos Mortos da FEB, na Segunda Guerra Mundial, no Rio de Janeiro, são indiscutivelmente Heróis da Pátria. Visitei em Pistoia, Itália, o Cemitério Brasileiro, de onde os corpos foram exumados para ser trazidos de volta ao Brasil. A bandeira brasileira tremulava, soprada por uma brisa suave que percorria a campina e lhe atravessava o silêncio. Mesmo aquela terra estrangeira fora sacralizada pelos corpos de brasileiros imolados na guerra em defesa dos valores da liberdade e do direito. Gente simples.

Não chegamos a ter aqui a categoria social de "gente comum", que ainda é corrente em alguns países da Europa. Explica-se: tivemos escravidões, a indígena e a negra, cujas definições já eram suficientes para as classificações sociais, para os preconceitos em que se fundavam e para as interdições de relacionamentos entre distintas categorias de gente. Os que viveram no cativeiro ou por ele "passaram" já carregavam a marca que os diminuía na escala humana. Os oriundos da escravidão indígena eram os pardos, e isso já indicava que na concepção da época talvez nem fossem gente. Os oriundos da escravidão negra ainda hoje padecem o estigma de sua diferença. Há quem se suponha generoso ao neles reconhecer méritos quando os considera negros de alma branca. Na desumanização desses preconceitos históricos contra os simples não nascem heróis reconhecíveis. Nossa concepção de herói é arcaica, pobre e injusta.
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José de Souza Martins é sociólogo, membro da Academia Paulista de Letras e autor de “Uma Sociologia da Vida Cotidiana” (Contexto), dentre outros.

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