domingo, 1 de outubro de 2017

Inversão de valores | Míriam Leitão

- O Globo

Política vive total inversão de valores. Em uma semana em que houve tantos maus exemplos, o melhor sinal veio de dentro de uma prisão. O ex-ministro Antonio Palocci, na sua carta, dá uma lição ao PT, ao PSDB, aos políticos em geral. Palocci estranhou porque estava sendo acusado pelo seu ex-partido por ter confessado crimes e não por tê-los praticado. Os tucanos também brigaram quando a direção decidiu fazer autocrítica.

O que Palocci mostrou, na carta, é que há uma inversão de valores. Não foi cobrado pelo PT quando foi acusado de crimes, mas apenas quando os admitiu. Os políticos estão fazendo inversões assim. A primeira turma do STF foi criticada por suspender o mandato de um senador que pediu dinheiro a um investigado. Dinheiro que seria recebido em espécie, em malas, e sem qualquer declaração. O senador Aécio Neves, na conversa que teve com o hoje presidiário Joesley Batista, ainda fez troça falando em “matar” o portador depois da entrega. Nada disso foi considerado grave. O que causou reação no Senado foi o Supremo ter suspendido seu mandato e determinado que ele se recolha em casa à noite. Aécio acredita que será salvo pelo abraço dos afogados. Os senadores temem o mesmo destino e por isso o apoiam, mesmo os de partidos adversários. Ele é ainda, oficialmente, o presidente do PSDB. O partido, ao não destituí-lo da presidência, repetiu o erro que cometeu quando o hoje condenado Eduardo Azeredo era seu presidente e foi acusado no mensalão mineiro.

O PSDB admitiu em seu programa que cometeu erros e se desviou do projeto dos seus fundadores. Isso fez com que uma avalanche de críticas desabasse sobre o presidente em exercício Tasso Jereissatti. O único reparo que caberia àquela peça de autocrítica foi o partido ter recorrido a atores para dizer que errou. Os políticos têm que pôr a própria cara e admitir os muitos erros que estão abalando a confiança do país na democracia e alimentando o perigo autoritário.

Palocci reconheceu que cometeu crimes, em situações que, segundo escreveu, “presenciei, acompanhei ou coordenei, normalmente junto ou a pedido de Lula”. O ex-ministro na sua longa carta recoloca a questão como ela deve ser. Desfaz a inversão de valores. Ele disse que estava preparado para a punição do partido por ter cometido crimes, por ter sido condenado, mas não por ter admitido as ilegalidades. O que ele faz com esse ponto da carta é mostrar como os valores estão trocados na política brasileira.

Mas não é só na política. No mesmo dia em que a carta foi divulgada, o ministro do STF, Gilmar Mendes, adicionou mais uma peça à sua já vasta coleção de decisões absurdas. Concedeu habeas corpus a um criminoso contumaz condenado em segunda instância, o ex-presidente da Assembleia Legislativa do Espírito Santo, José Carlos Gratz. Gilmar tem decidido que não vale o que o STF julgou de forma colegiada: que o condenado em segunda instância deve cumprir a pena. Segundo o ministro, “o réu, preso ou não, tem o direito de obter resposta do Estado-juiz. Não pode ficar vinculado indefinidamente a um processo criminal”. A condenação em segunda instância ocorreu em abril e ele foi recolhido à prisão porque essa é a determinação da Suprema Corte. Mas esses cinco meses de cumprimento de decisão colegiada pareceu ao ministro Gilmar Mendes uma espera indefinida. Gratz é o exemplo de tudo o que se quer afastar da vida pública brasileira. Há uma inversão de valores na lógica do ministro. É a sociedade brasileira que não pode ficar esperando indefinidamente pela Justiça.

“Estou disposto a enfrentar qualquer procedimento de natureza ética no partido sobre as ilegalidades que cometi”, diz Palocci em sua carta. Mas o PT ataca quem confessa os crimes e protege os suspeitos e os condenados. “Falar a verdade é sempre o melhor caminho”, diz o ex-ministro, mas é exatamente o que não acontece na política hoje. O senador Aécio Neves diz que caiu numa armadilha de Joesley. A armadilha o forçou a dizer o que disse naquela gravação? Há tantos sinais de inversão de valores no país hoje que o cidadão se afasta cada vez mais do poder, como se ele fosse exercido por extraterrestres.

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