domingo, 15 de outubro de 2017

País dos privilégios | Míriam Leitão

- O Globo

O Brasil cria mais privilégios a cada semana. Na quarta-feira, o STF demonstrou que, se for o senador Aécio Neves que estiver em questão, pode-se ter uma interpretação ambígua até sobre os poderes do Supremo. Na sexta-feira, o Planalto pediu ao STF para revogar a prisão após a condenação em segunda instância, um dos raros avanços nos últimos anos sobre o velho problema do país.

O tratamento desigual é o centro dos erros brasileiros, mas isso é reafirmado constantemente. Pobres e anônimos vão presos após qualquer condenação, ou passam anos detidos sem sequer culpa formada. Ricos e famosos só iam para a prisão após a longa tramitação do processo. O caso Pimenta Neves é o exemplo. Um dos muitos. Assassino confesso, em crime premeditado, ficou anos fora da prisão — mesmo após dupla condenação — pela força das estratégias recursais dos seus advogados. No ano passado, o STF decidiu que, após ser condenado por um órgão colegiado, portanto em segunda instância, o réu começa a cumprir a pena. Isso, hoje, ameaça diretamente muitos integrantes da elite política brasileira processados pela Lava-Jato. Alguns ministros do STF ficaram inconformados com a decisão e iniciaram o bombardeio para que o entendimento fosse revisto. Agora, a Advocacia-Geral da União enviou ao STF manifestação a favor da revisão.

No Brasil, se o criminoso fez ensino superior tem direito à cela especial. Se for político, pode cometer crime comum porque é protegido por imunidade parlamentar. Se for militar, cumpre pena e fica ao abrigo da Justiça Militar, aquela mesma que ameaçou e condenou civis durante a ditadura, mas que protege os seus na democracia. O almirante Othon Luiz Pinheiro, ex-presidente da Eletronuclear, condenado a 43 anos por corrupção, exigiu ficar preso em estabelecimento militar e conseguiu. Agora, já está solto na onda recente que houve de liberação de condenados nos vários processos contra a corrupção que o país tem assistido.

O que houve no STF na quarta-feira mostrou até que ponto pode chegar o contorcionismo jurídico no país para se confirmar a ideia da “A revolução dos bichos”, de George Orwell, de que todos são iguais perante a lei, mas alguns são mais iguais do que os outros. Parlamentares já foram afastados de seus mandatos por decisão do STF, como Delcídio Amaral e Eduardo Cunha, como deve ser. Nessa semana, um Supremo dividido decidiu de maneira diferente. Se a medida cautelar, mesmo que não seja a prisão, afetar o mandato, o Congresso tem que ser ouvido antes. A última palavra cabe ao Congresso e não ao Supremo Tribunal Federal.

A ideia de que “o mandato é o que está sendo protegido e não o parlamentar" é balela. O voto é para que o político represente o seu estado ou sua região, e não para que cometa crimes. A imunidade foi pensada para proteger a atividade parlamentar. Por isso tudo, o que se relaciona ao exercício dessa representação está protegida. E assim foi escrito na Constituição, porque, em períodos autoritários, os parlamentares eram cassados por suas palavras, ideias, e atividades de representação. Quando se escreveu na Constituição o princípio da imunidade parlamentar, não se pensava, evidentemente, em crime comum.

A questão da quarta-feira não era sobre o senador Aécio Neves oficialmente, mas de fato era. Com ele em mente, e o voto da presidente do Supremo, o STF errou. Minas Gerais votou para que o senador representasse os interesses do estado, e defendesse as ideias que apresentou na campanha. Ele não foi eleito para pedir dinheiro a um investigado em cinco operações anticorrupção. Dinheiro que seria entregue em espécie a um enviado especial, desses que “a gente mata antes". Não foram esses os poderes que Minas delegou ao senador quando o elegeu. A tese de que “o mandato é do povo, e o povo, soberano” só pode ser defendida se vier com a pergunta: qual poder foi delegado pelo povo ao seu representante? Certamente não foi o de cometer crimes.

Esse tem sido nosso vício desde o início. O país dos fidalgos, do “sabe com quem está falando", não aceita o “erga omnes". A revolução que está sendo feita no processo de combate à corrupção é a de que a lei é universal. Mas o velho país dos privilégios resiste.

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