quinta-feira, 26 de outubro de 2017

República Velha | Maria Cristina Fernandes

- Valor Econômico

Rejeição da segunda denúncia abre nova fronteira ao atraso

O painel da Câmara marcava 9h46 quando o deputado Luis Carlos Heinze pediu a palavra para relatar seu périplo por Brasília como cicerone do presidente de uma associação de empresas de aviação agrícola. Estava em pauta a segunda denúncia contra o presidente Michel Temer, mas o deputado, do PP gaúcho, não se pronunciou sobre o tema. Limitou-se a fazer um apelo contra operações que lacram aviões de pulverização e multam arrozeiros que os contratam. O deputado, ex-prefeito de São Borja, cidade natal de Getulio Vargas, fez um apelo público contra as autuações da Anac e do Ibama: "O único setor que está dando certo neste país é a agricultura".

Em agosto deste ano Heinze surpreendeu ao votar pelo acolhimento da primeira denúncia contra o presidente Michel Temer. O deputado fez coincidir o périplo com a segunda denúncia, mas se manteve coerente com seu primeiro voto e voltou a se manifestar pelo acolhimento da segunda denúncia. A posição do deputado, expoente da bancada ruralista, é uma demonstração de que o governo não esgotou sua pauta ontem. Não terá força para aprovar medidas fiscais de maior fôlego, como a reforma da Previdência, mas o ajuste nunca foi sua pauta. O PMDB assumiu a titularidade do poder para gastar em benefício de uma ampla aliança que garanta sua sobrevida e de seus aliados a partir de janeiro de 2019. Terá que avançar na picada aberta por Heinze.

Os ruralistas são e continuarão a ser a ponta de lança das novas fronteiras que se abrem nos 14 meses que restam a Temer. A liminar da ministra Rosa Weber lhe ofereceu a oportunidade de ser derrotado sem deixar de atender à bancada. Mas a pauta extrapola o trabalho escravo. Agrega perdões, das dívidas com o Funrural às multas do Ibama, e, na era das super safras a qualquer preço, avança sobre setores que lhe oferecem resistência.

Parte da aviação agrícola é dedicada à pulverização de defensivos, mercado em que o Brasil é líder mundial. Não apenas por ser potência agrícola, mas também porque é um dos mais permissivos no uso de agrotóxicos. Um dos herbicidas mais comercializados no país, à base de paraquate, é proibido em Burkina Fasso, na Síria e no Senegal. É igualmente vedado em países que o fabricam, como a China e a Suíça. Tem uso restrito nos Estados Unidos e no Canadá.

O produto chegou a ser proibido no Brasil mas, em 2015, a Anvisa voltou atrás no banimento. Reconheceu que o produto extrapolava os parâmetros de toxicidade permitidos no país, mas argumentou que sua proibição reduz "as alternativas para o controle de pragas em culturas relevantes da economia".

Especialistas reunidos pela Defensoria Pública de São Paulo foram taxativos em demonstrar o aumento na incidência de malformações e cânceres em regiões agrícolas do Estado intensivas no uso de agrotóxicos. Concluíram que apenas 30% do produto pulverizado chega às plantações. Cubatão deixou de ser o paradigma de cidade em que os moradores pagam com sua saúde o preço do progresso. Hoje a prevalência de malformação em Cubatão está na média do Estado. A de Franca é o dobro e a do Pontal de Paranapanema, o triplo.

A produtiva sesmaria em que se transformou o país pressiona o SUS e exige mais investimentos em saúde pública, que ficaram inviabilizados tanto pela PEC dos Gastos quanto pelo crescente volume de renúncia fiscal. O defensor público Marcelo Novaes calcula que o setor tenha movimentado R$ 32 bilhões no ano passado e pago, em impostos federais diretos e indiretos, 1,7% desse valor.

Em São Paulo, Estado que sedia metade das indústrias de agrotóxicos do país e é seu segundo mercado, depois do Mato Grosso, a arrecadação é igualmente pífia. No ano passado, Novaes encaminhou requerimento de informações sobre a desoneração fiscal do Estado com 22 perguntas. Em ofício, foi informado de que, para 17 delas, não havia respostas. Um mês depois, recebeu a notificação sobre a renúncia fiscal do setor que, no ano anterior, havia somado R$ 318 milhões.

Nos cálculos de Novaes, a desoneração equivale à destinação anual de R$ 22 de cada paulista para o fomento dos agrotóxicos. A renúncia fiscal do setor, em todo país, autorizada por uma portaria do conselho de secretários estaduais da Fazenda, hoje é alvo de uma ação direta de inconstitucionalidade sem data para entrar em pauta no plenário do Supremo Tribunal Federal.

O deputado que lidera a nova fronteira dos ruralistas ganhou notoriedade nacional em 2013 ao dizer, durante audiência pública sobre a demarcação de terras indígenas, que "quilombolas, índios, gays e tudo que não presta" estavam aninhados na gestão anterior: "Eles têm a direção e o comando do governo".

A disputa política em torno da mudança de governo em 2016 levou esperanças a setores expressivos da sociedade. Hoje parece não haver dúvidas de que o Brasil caiu no colo do atraso. Depois de desmontar a fiscalização do trabalho escravo, o país parte para desidratar o que resiste de normatização para o uso de agrotóxicos. Pouca saúde, muita saúva, os males do Brasil são, dizia um paulista que teve seus anos de formação na República Velha revisitada nos desequilíbrios provocados pela aliança governista.

Como os defensivos são insumo da agricultura, a renúncia fiscal se enquadra no discurso de que a taxação do setor oneraria tanto a cesta básica quanto as exportações. Novaes indaga quem paga tanto a infraestrutura que viabiliza o escoamento dessa produção quanto os problemas de saúde derivados da expansão do seu mercado no país.

A resposta ao defensor é o que aproxima o Brasil de hoje àquele do regime iniciado com o fim da monarquia. A diferença é que, para tomar de empréstimo a expressão consagrada por Aristides Lobo, deputado alagoano do Império, os brasileiros, desta vez, não assistiram ao espetáculo bestializados. Suas manifestações, a partir de 2013, acabaram por se transformar no ato inaugural de um governo que já nasceu velho.

Leituras de Moro
O juiz Sérgio Moro leu e gostou de "Flores, votos e balas", de Angela Alonso (Cia. das Letras, 2015). O livro confronta a tese de que a abolição derivou de ato jurídico estanque da monarquia, mas, sim, da mobilização da sociedade (flores), de lideranças políticas (votos) e da desobediência civil que, por vezes, resultou em confrontos (balas).

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