domingo, 22 de outubro de 2017

Viagem ao passado | Míriam Leitão

- O Globo

A sensação triste de “volta à quadra um” ocupou boa parte da semana passada a partir do momento em que surgiu no Ministério do Trabalho a portaria que redefinia o trabalho escravo e dava poderes de censura ao ministro. O presidente Temer admitiu na sexta-feira que pode fazer alterações e se o fizer será apenas para tirar algum bode da sala, porque o único destino correto dessa portaria é sua revogação.

O Brasil discutiu intensamente este assunto no começo dos anos 2000 e o resultado do debate, naquela época, foi a formação de um pacto nacional contra o crime. A fiscalização se aparelhou, empresas se comprometeram com o boicote econômico aos que estavam na lista suja e o país demonstrou querer, enfim, se atualizar. Um dos avanços foi superar a desculpa de que é preciso definir melhor o que é o crime, porque as avaliações dos fiscais seriam subjetivas.

Não há subjetividade quando se fala de trabalho análogo à escravidão. Basta ler o Código Penal, analisar os autos dos flagrantes dados pelos auditores do Ministério do Trabalho ou acompanhar a literatura que existe no mundo sobre o tema. O Código Penal inclui jornada exaustiva, trabalho degradante, servidão por dívida, trabalho forçado, restrição à locomoção como parte da lista de condições desumanas a serem erradicadas.

O ministro Gilmar Mendes falou de forma irônica e superficial sobre o assunto, dizendo que faz trabalho exaustivo mas não é um trabalhador escravo. Ninguém da elite o é. O ministro falou o que não devia, o que no caso dele já virou um pleonasmo.

Quando o Brasil debateu mais o assunto, na primeira década deste século, acompanhei em detalhes alguns casos envolvendo políticos que tiveram suas fazendas flagradas praticando o crime. O exdeputado Inocêncio Oliveira, que foi duas vezes presidente da Câmara, foi um desses. No processo do caso dele estava registrado o seguinte: “Que os trabalhadores não tinham conhecimento dos valores que seriam descontados de sua remuneração, os quais eram anotados em um caderno.” Na fazenda Caraíbas, no Maranhão, que era de sua propriedade à época, foram encontrados 53 piauienses em péssimas condições de trabalho. O flagrante foi em 2002. Um dos intermediários de mão de obra para o deputado disse que os trabalhadores foram contratados “mediante pagamento por produção, com desconto de despesas de alimentação, ferramentas ou botas; que os trabalhadores deveriam trabalhar na fazenda, sem dela poder se ausentar, enquanto a diferença entre o valor do seu salário e da sua dívida não fosse quitada”.

Condenado em duas instâncias, o então deputado conseguiu que o crime fosse “rebaixado”. Em vez de trabalho escravo virou “apenas” trabalho degradante. Quem pediu sua condenação foi a procuradora Raquel Dodge, e o procurador-geral Claudio Fonteles endossou o pedido. O antecessor de Fonteles, Geraldo Brindeiro, pediu que fosse arquivado porque não viu “dolo”.

Quando chegou ao Supremo, a ministra Ellen Grace considerou que não era trabalho escravo porque não havia “algemas”. Numa entrevista para mim, o deputado lavou as mãos: “Eu nem falava com esse pessoal. De vez em quando um me perguntava alguma coisa e eu dizia: ‘não sei quanto é não, pergunta lá.” O processo acabou arquivado no Supremo Tribunal Federal, em 2006.

Mesmo com retrocessos, o pacto foi se formando e houve um avanço quando as grandes redes de supermercados se comprometeram a não comprar de quem estivesse na lista suja ou tivesse entre seus fornecedores alguma dessas empresas. A lista passou a ser a grande arma na luta contra esse crime, por isso ela começou a ser combatida.

Um dos casos impressionantes, da época, foi o de uma fazenda, Gameleira, de um irmão do senador Armando Monteiro. Foi flagrada quatro vezes. Por fim, trocou o nome da firma. Monteiro sempre afirmou que nada tinha com os problemas do irmão, mas pelo menos uma vez foi ao Ministério do Trabalho defender os interesses fraternos.

Assim era o Brasil que se tentava deixar para trás no começo do século 21, mas que reapareceu semana passada. A portaria do ministro Ronaldo Nogueira teve o apoio de empresários da indústria, agricultura e construção civil. Assim é o Brasil.

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