sábado, 25 de novembro de 2017

Foro privilegiado é caixa-preta para a Justiça

Em meio ao debate sobre o foro privilegiado, nem o Conselho Nacional de Justiça nem os tribunais sabem ao certo quantas dessas ações tramitam no país.

Foro privilegiado é caixa-preta em tribunais

Não há dados sobre quantidade de ações com réus que têm o direito de não serem julgados na 1ª instância

Sérgio Roxo / O Globo

Além de ser alvo de polêmica, o foro privilegiado também é uma caixa-preta em meio aos milhares de processos no Brasil. Durante a sessão da última quinta-feira, os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) discutiram a limitação do benefício para as ações que envolvem deputados federais e senadores, mas o direito de não ser julgado na primeira instância como os demais cidadãos é extensivo a ministros, deputados estaduais, promotores, prefeitos e, em alguns estados, até a delegado de polícia e a dirigentes de autarquias. Com um leque tão grande de autoridades beneficiadas, ninguém sabe quantas ações envolvendo réus com foro tramitam no país.

Nem o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que faz anualmente um raio-x do Poder Judiciário, tem dados sobre o total de processos. No último relatório “Justiça em Números”, divulgado em setembro com base em dados do ano passado, o órgão chega a abordar o tema e informa que 35% dos casos que começaram a tramitar na segunda instância da Justiça Estadual e Federal (TJs e TRFs) em 2016 eram relativos a foro. Em números absolutos, seriam 76 mil ações em apenas um ano.

Em uma tabela enviada ao GLOBO que teria servido de base para a produção do relatório chegava a constar que 73% das novas ações que começaram a tramitar no Tribunal de Justiça de Alagoas tinham réus com foro. Questionado sobre o número elevado, o CNJ reconheceu que a conta estava equivocada e que no cálculo foram incluídos também os habeas corpus de pessoas sem foro — que são, inclusive, a maior parte das ações originadas nas instâncias superiores.

Os próprios tribunais também têm dificuldade para dizer a quantidade de ações com foro em tramitação. O Tribunal de Justiça do Rio e o Tribunal Regional Federal da 2ª Região, responsável pelos crimes federais ocorridos no Rio e no Espírito Santo, foram consultados e não informaram quantos processos desse tipo estão em andamento. As cortes mais altas, porém, têm mais facilidade para fazer a contabilidade. O STJ disse ter 74 ações penais e 107 inquéritos relacionados a foro. Já o STF possuía, em fevereiro, 357 inquéritos e 103 ações penais contra congressistas.

Para Gustavo Justino de Oliveira, professor da USP, a amplitude do foro no Brasil, considerada uma das maiores do mundo, contribui para a dificuldade de contabilizar as ações em tramitação.

— O foro privilegiado no Brasil tem uma extensão que dificilmente será encontrada em outros países, a não ser em ditaduras. É a extensão do foro privilegiado e o fato de a maior parte dos processos serem colocados sob segredo de Justiça que faz com que os casos fiquem camuflados no sistema judicial brasileiro — avalia o professor.

Ações e inquéritos com réus e investigados tramitam no STF, no Superior Tribunal de Justiça (STJ), na segunda instância da Justiça Federal, formada pelos cinco tribunais regionais federais, nos 27 tribunais de Justiça estaduais e nos tribunais regionais eleitorais. A corte em que correrá a ação depende do cargo ocupado. Prefeitos são julgados pelos Tribunais de Justiça Estaduais ou pelos Tribunais Regionais Federais — nesse último, caso sejam acusados de um crime federal. Já as ações contra governadores ficam no STJ.

ESTADOS AMPLIAM BENEFICIADOS
Além das autoridades previstas na Constituição (presidente, ministros, governadores, conselheiros de tribunais de contas, desembargadores, comandantes das Forças Armadas, entre outros), o foro também atinge ocupantes de outros cargos no âmbito estadual. Nesses casos, cada uma das constituições estaduais define o leque de beneficiados. São comuns em todas as unidades da federação o direito ao foro para deputados estaduais, secretários estaduais e prefeitos. Mas com relação às demais autoridades a variedade é grande. Como exemplos, no Rio, não são julgados na primeira instância os vereadores dos 92 municípios e os delegados de polícia. Em Roraima, podem se valer do benefício os presidentes de autarquias.

Um outro problema destacado por especialistas relacionado à tramitação de processos criminais em tribunais superiores é que essas cortes não estão preparadas para a fase de instrução, quando são colhidos os depoimentos de testemunhas e determinadas medidas como quebras de sigilo, o que acaba atrasando a tramitação das ações.

— Não conheço um tribunal que seja preparado para a fazer instrução do processo, para organizar a coleta de provas — afirma Vladimir Passos de Freitas, ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª região (TRF-4).

As dúvidas que pairam

1 Como será a transferência dos processos para a 1ª instância, caso o STF confirme a decisão de restringir o foro?

Não ficou definido se o STF vai analisar caso a caso ou se a transferência é automática. Pode haver casos em que seja cabível de discussão e se o crime é ou não relacionado ao cargo. “A diretriz do Luís Roberto Barroso é: na dúvida não tem foro”, diz Rubens Glezer, coordenador do Supremo em pauta da FGV Direito.

2 Parlamentares serão julgados mais rapidamente?

Isso não está correto. Segundo o relatório Supremo em Números, do Conselho Nacional de Justiça, o tempo médio de tramitação das ações encerradas no país em 2016 foi de 4 anos e 4 meses. Segundo especialistas, a lentidão não é problema exclusivo do STF no Judiciário. Há o risco de os advogados dos réus entrarem com inúmeras apelações para retardar a transferências das ações.

3 Além de deputados e senadores, as outras autoridades com foro também serão afetadas?

Em princípio não. Apenas os parlamentares acusados de crimes não relacionados ao mandato perderiam o benefício de serem julgados no STF. Mas pode haver pressão para limitação do foro a ministros, governadores e prefeitos.

4 Juízes de primeira instância poderão determinar buscas em gabinete de deputados ou conduções coercitivas de parlamentares?

É uma questão que terá que ser respondida pelo Supremo quando surgir um caso concreto.

5 Ordens de prisão contra parlamentares deverão ser enviadas às casas legislativas?

É outra questão que ainda precisará ser definida pelo STF depois que o julgamento for concluído e quando o primeiro juiz de primeira instância tomar essa decisão dentro das novas regras.

6 Se o Congresso aprovar emenda constitucional com mudanças no foro, a decisão do STF perde validade?

Sim. Mudanças aprovadas pela Câmara e pelo Senado se sobrepõem às mudanças do Supremo.

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