segunda-feira, 13 de novembro de 2017

Gaudêncio Torquato: As duas imagens do Brasil

- Blog do Noblat

O grau civilizacional de uma Nação pode ser aferido pela maior ou menor identificação com o sistema do qual faz parte. Que espelho ou sistema podem ser usados para o Brasil ser visto?

Tomemos emprestadas duas imagens do Ocidente que o professor Samuel P. Huntington utiliza em seus ensaios.

Na primeira, as nações ocidentais dominam a estrutura financeira internacional, manobram moedas fortes, fornecem a maioria dos bens acabados, controlam o ensino de ponta, realizam as grandes pesquisas científicas, dominam o acesso ao espaço, as co¬municações internacionais, a indústria aeroespacial e as rotas ma¬rítimas, enfim, compõem o maior agregado de bens e serviços do mundo.

Na segunda imagem, distingue-se um conjunto de Nações em crise, com parcela de seu poder político, econômico e militar em declínio.

Nesse segundo cenário, apontam-se lento crescimento econômico, alto desemprego, enorme déficit público, baixas taxas de poupança, criminalidade e imensa desigualdade social.

Com qual imagem a Nação brasileira mais se parece?

Para ajudar o leitor a tirar conclusões, vale lembrar que o País, depois de décadas de inflação alta, tem hoje uma moeda estável. Apresenta bom superávit na balança comercial, chegando a exibir US$ 5,178 bilhões em setembro último, o melhor resultado para o mês desde o início dessa série histórica do governo, em 1989.

Exibe, em alguns setores, tecnologia de ponta; é competitivo em nichos como o agronegócio; tem administrado o risco País, que havia crescido muito.

Em outra escala, exibe péssimo coeficiente (Gini), que mede a distribuição de renda entre indivíduos.

Hoje, o Brasil ocupa o 79º lugar entre 188 nações no ranking de IDH, que leva em conta indicadores de educação, renda e saúde, despencando 19 posições na classificação correspondente à diferença entre ricos e pobres.

Enterra, anualmente, 60 mil vítimas da violência por armas; apresentou uma taxa de investimento de cerca de 15,6% no primeiro trimestre de 2017( na China essa taxa tem ultrapassado 45%); somos líder mundial no ranking das taxas de juros e da carga tributária, essa atin¬gindo 37% do PIB.

Contraste entre dois Brasis
Esses dois conjuntos de dados, pinçados aleatoriamente, conferem ao Brasil duas posições na área da imagem: positiva e negativa. As duas bandas da imagem do Ocidente abrigam o ter¬ritório brasileiro. O que chama a atenção, porém, é o contraste entre os aspectos positivos e negativos do País, usados ora para situá-lo na esfera do Terceiro Mundo, ora para inseri-lo no universo restrito das Nações emergentes, particularmente junto ao grupo chamado de BRIC – Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul.

A dimensão continental do território; os vastos recursos naturais, a partir da maior reserva de água doce do mundo e de extraordinárias reservas minerais; os potenciais em setores específicos, que passam a incluir até o petróleo, do qual não somos mais dependentes internacionalmente; as belezas naturais, que projetam um promissor cenário turístico, particularmente quando se leva em conta os conflitos étnicos e de cunho religioso, o terro¬rismo e as disputas por espaço; uma infraestrutura técnica preparada para a alavancagem de setores produtivos; quadros profissionais gabaritados e escolas em processo de melhoria do ensino, enfim, um espaço tropical que, até o presente, não tem sido devastado por grandes catástrofes naturais – terremotos, maremotos – são alguns dos eixos que sustentam a confiança no futuro brasileiro.

Longe da pátria
Se a base territorial é sólida, por que o edifício balança com os ven¬tos que sopram ocasionalmente em ciclos de crise?

Porque a estrutura institucional é frágil. Esse é o dilema brasileiro.

Somos uma expressão geográfica de peso, mas estamos ainda longe de constituirmos uma Pátria, assim entendida como sincronismo de espíritos e de corações, solidariedade sentimental de raças, comunhão de esperanças, sonhos comuns, decisão coletiva para marchar juntos.

Parâmetros comparativos nos fazem lembrar filmes do velho Oeste americano, povoado de xerifes e índios, bandidos e mocinhos, muitas maldades e poucas bondades, muito tiro e confusão. Veja-se a violência que se espraia pelas ruas de cidades grandes, médias e até pequenas. Os assassinatos se multiplicam por todas as partes.

Disputas por espaço público se avolumam na esteira da mudança da política: de missão, no conceito aristotélico, virou profissão.

Os donos do poder usam as instituições para reforçar seu sistema de forças. As leis ficam sob o abrigo das circunstâncias. Atente-se para a reforma trabalhista, cujas disposições passaram a vigorar, ontem, sábado.

Pois bem, procuradores do Ministério Público do Trabalho e juízes do trabalho garantem que não irão cumpri-la. Vão romper a lei. É um caso explícito de desobediência civil.

Casuísmos em sequência solapam as instituições.

A mediocridade se instala nos vãos e desvãos do Estado. Governos de Estado e prefeituras criam seus feudos.

José Ingenieros, o grande escritor argentino, ensina: enquanto um País não é Pátria seus habitantes não constituem uma Nação; quando os interesses venais se so-brepõem ao ideal dos espíritos cultos, que constituem a alma de uma Nação, o sentimento nacional degenera e a Pátria, explorada como indústria, regressa à condição de território bruto.

Por essa via, podemos aduzir que o Brasil apresenta potenciais de grandeza, mas a imagem da Pátria aponta vazios que não per¬mitem considerá-la Nação respeitada.

Os desafios para que o País possa alcançar imagem de respeito na moldura ocidental pressupõem a consolidação das instituições sociais e políticas, o que, por sua vez, requer o resgate de valores fundamentais da cidadania, como a educação, a igualdade entre classes, o acesso e a justiça para todos, a harmonia e a paz social, a comunhão de esperanças. Isso é coisa para duas ou mais gerações.

Até lá, o País ca¬minhará em curvas, subindo e descendo, ora exibindo suas fabulosas riquezas, ora desfilando suas misérias. Poderia até encurtar o trajeto, se os homens públicos tivessem vontade política para refundar a Re¬pública sob o signo da dignidade.

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Gaudêncio Torquato é jornalista, professor titular da USP, consultor político e de comunicação.

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