domingo, 19 de novembro de 2017

Luiz Sérgio Henriques*: Profissão esperança

- O Estado de S.Paulo

Corre contra o tempo quem acalenta a ideia de reconstruir o centro político em 2018

As dificuldades da política democrática – aquela que de modos muito variáveis, segundo os diferentes contextos, apela ao centro político e o considera lugar por excelência de conflito e consenso – estão à vista de todos e não se restringem a nós. Pode ser frágil consolação para nossa própria miséria, mas o fato é que, fora das nossas fronteiras, também nos assustamos com as estratégias radicais de polarização, toscas, mas conscientes, postas em prática por “populistas” de vários tons e matizes, e diferentes graus de periculosidade, a começar pelo caso evidente da mais antiga das democracias contemporâneas.

Nela, surpreendentemente, da própria sala de comando partem assaltos continuados à razão, ameaçando mais do que a coesão do grande país do norte ou a arquitetura institucional construída nas últimas décadas para ordenar de algum modo as relações globais. Como está claro, o extremismo de Donald Trump parece pôr em risco o próprio estatuto da verdade, tal como modernamente pode ser concebida a partir do debate plural, em razoáveis condições de paridade, entre os diferentes atores da sociedade aberta.

Os novos inimigos desse tipo de sociedade – diferentemente dos velhos inimigos, com suas versões “totais” de Estado e sociedade, baseadas na hipótese racionalista da “classe universal” ou, de modo bárbaro, na da “raça superior” – apostam desabridamente na polarização destrutiva. A falsificação elementar dos fatos é sua estratégia. O irracionalismo diante de consensos científicos razoáveis, como o que se tem estabelecido em torno dos riscos ambientais, é o credo acintoso que ostentam, em prejuízo da inteligência. A linguagem do ódio é o recurso expressivo predileto, cindindo de alto a baixo as relações cotidianas de homens e mulheres comuns.

Polarização e antagonismo – segundo a distinção do chileno Fernando Mires – não são a mesma coisa. A primeira requer, patologicamente, a destruição do outro polo e com ele não admite interação de nenhum tipo. Para um fanático de direita, não existe a esquerda política, mas sim, ressalvado o duvidoso neologismo, “esquerdopatia”. Para um fanático de esquerda, posições moderadas devem ser toleradas até a “relação de forças” permitir seu cancelamento. A América ideal de Trump exclui imigrantes latinos e árabes – e muito possivelmente os negros. O populista latino-americano de nossos dias se vê como a encarnação inteiriça de toda a nação. Quem a ele se opõe merece ser desqualificado como inimigo do povo ou lacaio do império.

Os antagonismos, nessa linha de raciocínio, seguem outra lógica. Podem explicitar-se na plenitude de suas forças porque admitem a política como centro. Adversários que se colocam em tal plano – o da centralidade da política – reconhecem forças e fraquezas recíprocas. Ganha prestígio e consenso quem triunfar sobre o adversário em seus pontos mais altos, incorporando-os de modo coerente e rigoroso ao próprio programa. E esse triunfo, como facilmente se depreende, tem prazo de validade predeterminado até novas eleições, cujo calendário deve valer como crença popular solidamente enraizada.

O que atemoriza no Brasil de agora é que, projetando-se mecanicamente o cenário mais comum das pesquisas, poderemos ter pela frente a neutralização do centro político e a confrontação, necessariamente estéril, de polos que não se tocam nem interagem. A esquerda lulista, por oportunismo ou convicção, jamais criou uma linguagem capaz de hegemonia. Sindicalistas no palanque podem desenvolver um estilo de confrontação, ainda que mais encenada do que real; esquerdistas de matriz “cubana” ou “venezuelana”, chegando ao governo, mostram-se impacientes com limites constitucionais e passam a se perguntar, anacronicamente, sobre o lugar do poder real, que querem absorver e controlar. Sindicalistas e esquerdistas moldaram o vocabulário e a sintaxe do petismo. E os disseminaram com sucesso, dizem-nos as pesquisas, sobre um bom terço do eleitorado, apequenado diante do líder carismático que já há décadas se repete e imobiliza politicamente o País, à maneira de um imperador de fancaria.

À força de gritar “direita!” a propósito de toda e qualquer crítica, a linguagem binária do petismo terminou por favorecer e criar o terreno mais favorável para a nova direita brasileira, nos moldes de Trump. Mantida a contraposição polar, além de se estreitarem as possibilidades de uma campanha civilizada, entre outras coisas estará interditado o debate econômico: ao nacional-estatismo, catastroficamente ressuscitado por Lula e Dilma Rousseff, se contraporá um liberalismo econômico abstrato e extremado, forjado para a ocasião, sem que nenhuma dessas duas posições, postuladas doutrinariamente, deixe entrever o fato de que Estado e mercado são instituições falíveis e, ambas, necessitadas de controle, limite e regulação democrática.

Sob o influxo de poderosas correntes externas, seremos arrastados, querendo ou não, pelas vagas irracionais das “guerras de cultura” ao estilo norte-americano. O que menos importará, no caso, será a afirmação de um espaço público arejado e laico, à altura dos novos tempos, aberto até mesmo aos valores religiosos. Não casualmente, como escreve Cacá Diegues, constatamos ao redor o retorno triunfal das patrulhas ideológicas, avessas à noção de que a liberdade de pensamento é, por definição, a liberdade de quem pensa diferente de nós.

Corre contra o tempo quem acalenta a ideia de reconstruir o centro político em 2018. A seu favor tem só a certeza de que, longe de evocar a noite em que todos os gatos são pardos, o centro reconstruído é um espaço que pressupõe inteligência e sentimento profundo do País. Em tempos mais terríveis ainda, um artista talentoso quis dar a cada um de nós, brasileiros, a “profissão esperança”. Está na hora de retomar essa nossa profissão esquecida.
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* Luiz Sérgio Henriques é tradutor e ensaísta. Um dos organizadores das ‘obras’ de Gramsci no Brasil

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