sábado, 18 de novembro de 2017

O papel da Justiça – Editorial: O Estado de S. Paulo

Aplicar o Direito exige conhecer a lei e os fatos. Não basta uma apreciação genérica da situação fática, pois a correção da decisão depende da aplicação adequada da norma jurídica, que é sempre geral, ao caso concreto. É justamente essa a razão de existir do Poder Judiciário, formado por juízes de várias instâncias, que lhe dão capilaridade, e tribunais superiores. Em suma, para que a lei possa ser aplicada adequadamente, a autoridade judicial precisa estar próxima dos fatos.

O Poder Judiciário só oferece a sua contribuição específica para o funcionamento do Estado e a paz da sociedade ao aplicar a lei no caso concreto. Quando se tenta alargar as atribuições da Justiça, como se o seu papel fosse moralizar a sociedade ou eliminar a corrupção, há uma perversão da função institucional do Judiciário, por mais que essa tentativa esteja repleta de boas intenções. Em vez de contribuir para que a lei seja cumprida, esse alargamento das funções da Justiça leva, no melhor dos casos, a que a lei seja aplicada à revelia dos fatos, o que é um evidente abuso.

Não é função de um juiz, por exemplo, punir todos os homicídios cometidos em sua comarca. O seu papel é julgar, a tempo e a hora, os processos penais que chegam à sua vara judicial. Essa diferença, que pode parecer detalhe, tem enorme relevância prática. Se um juiz estiver convencido de que o seu papel é punir todos os homicídios de sua comarca, o seu objetivo deixa de ser o caso concreto – as provas concretas – e sua preocupação se desloca para a criminalidade da região. É certo que o bom trabalho de um juiz deverá redundar em diminuição da criminalidade, mas isso só ocorrerá se ele aplicar adequadamente a lei a cada processo. Seu compromisso é com a lei.

O caso da segunda denúncia contra o presidente Michel Temer ilustra bem a necessidade de o Poder Judiciário ater-se aos fatos de cada processo, para evitar injustiças e atropelos legais. Diante da não autorização da Câmara dos Deputados para que o Supremo Tribunal Federal (STF) desse andamento à acusação contra o presidente, o Ministério Público Federal (MPF) solicitou o desmembramento do processo, para que a denúncia relativa aos outros acusados – no caso do delito de organização criminosa, Eduardo Cunha, Henrique Eduardo Alves, Geddel Vieira Lima e Rodrigo Rocha Loures – fosse enviada à 13.ª Vara da Justiça Federal de Curitiba.

O relator do caso, ministro Edson Fachin, atendeu ao pedido do MPF, citando, como fundamento, a jurisprudência do STF de que a imunidade temporária relativa ao presidente da República, nos termos do art. 86, § 4.º da Constituição, não se comunica a outros acusados. A decisão parecia irreprochável, uma vez que a Câmara negou autorização para o prosseguimento da denúncia apenas contra o presidente Michel Temer e os ministros Eliseu Padilha e Moreira Franco, os restantes poderiam já ser processados. Na decisão do ministro Edson Fachin, não poucos viram uma demonstração de que o Supremo não pactua com a impunidade e a lentidão processual.

Realmente, vista de longe, a decisão parecia perfeita, com respaldo na lei e na jurisprudência, e ainda atendendo ao clamor da população, que não tolera conluios com a corrupção. O problema é que a decisão desconsiderou um dado básico do processo. Do processo em tela e do devido processo legal, princípio que jamais pode ser posto de lado. Os réus são acusados de formarem uma organização criminosa, sob a suposta chefia de Michel Temer. Ora, se a denúncia de organização criminosa tiver andamento na 13.ª Vara Federal de Curitiba, é certo que lá se produzirão provas com efeitos sobre Michel Temer, já que, segundo a acusação feita por Rodrigo Janot, ele seria o líder da quadrilha, participando do mesmo “grupo político” que os outros acusados. Tem-se, assim, a esdrúxula situação de um processo penal produzindo efeitos sobre uma pessoa que não participa do processo e nele não pode interferir, o que fere o princípio do contraditório penal e da ampla defesa, assegurado pela Constituição.

A defesa do presidente Michel Temer ajuizou recurso contra a decisão do ministro Edson Fachin. Será um bom teste para o STF, dando-lhe a oportunidade de mostrar que o seu compromisso é com o Direito, aplicado isentamente ao caso concreto. Afinal, uma atuação inteiramente dentro da lei é a maior contribuição que a Suprema Corte pode dar ao combate ao crime e à corrupção.

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