segunda-feira, 25 de dezembro de 2017

Bagunça nas delações: Editorial/O Estado de S. Paulo

Ao julgar a ação que discute a competência da Polícia Federal para fechar acordo de delação premiada, mais uma vez o Supremo Tribunal Federal (STF) teve de se deparar com a bagunça que, em junho deste ano, ele mesmo criou em torno da colaboração premiada, ao decidir sobre os limites da atuação do relator nesse tipo de acordo. Fica evidente que os equívocos judiciais, especialmente quando ocorrem na esfera da Suprema Corte, têm efeitos sistêmicos deletérios. No caso, a solução adotada em junho pelo STF tinha o objetivo de não desautorizar o ministro Edson Fachin na homologação do acordo de delação premiada da JBS. O problema é que, para supostamente salvar a face do ministro, a Corte seguiu um posicionamento contrário ao que dita a lei, o que, como era óbvio, só agravou o erro. Em vez de um ministro, agora é geral a imbricação numa interpretação parcial, que desequilibra o instituto da delação premiada.

Após a divulgação dos termos do acordo de delação premiada entre a Procuradoria-Geral da República (PGR) e o pessoal da JBS, ficou claro que o então procurador-geral da República, Rodrigo Janot, não havia seguido com muito rigor a lei. Entre outras questões, não lhe cabia conceder irrestrita imunidade penal aos delatores. No entanto, quando foi descoberto o deslize, o acordo de delação da JBS já havia sido homologado pelo ministro Edson Fachin. Naquele momento, o erro de Janot era também erro de Fachin, que não podia ter dado aval a essas condições acintosamente ilegais.

Acionado a se pronunciar sobre o assunto, o STF não quis corrigir o erro do ministro Edson Fachin. A Suprema Corte preferiu dizer que o papel do juiz que homologa uma delação é muito restrito, não lhe cabendo interferir nos termos do acordo. Deveria apenas verificar a legalidade, a voluntariedade e a regularidade do acordo, bem como seu cumprimento por parte do colaborador. Com essa criativa interpretação, os ministros do STF acabaram por alargar imensamente as competências do Ministério Público na celebração de acordos de delação premiada. Por exemplo, a fixação da pena, matéria que é de competência exclusiva do juiz, foi deslocada para a esfera do Ministério Público.

Menos de seis meses depois, o assunto voltou ao plenário do Supremo, por força de uma ação impetrada pelo Ministério Público contra a possibilidade de a Polícia Federal celebrar acordos de delação premiada. Ao mesmo tempo que não há dúvida de que a legislação prevê tal possibilidade – afinal, a Polícia Federal é responsável por investigar, e a delação premiada é um auxílio às investigações –, também não há dúvida de que fogem do escopo da Polícia Federal as matérias que o STF colocou sob a batuta exclusiva do órgão que celebra, em nome do Estado, o acordo de delação com as pessoas que desejam colaborar nas investigações.

Com razão, o Ministério Público defende que não cabe à Polícia Federal fixar pena para um investigado num eventual acordo de delação premiada. Por óbvio, idêntica regra também é aplicável ao Ministério Público, que não tem poderes para fixar penas. Como se vê, antes de o STF se debruçar sobre as competências específicas de cada órgão na celebração de acordo de delação premiada, é prioritário que seja revista a sistemática geral da colaboração premiada, corrigindo os equívocos da decisão de junho. Caso contrário, teremos um sistema absolutamente disforme para a colaboração premiada, provocando profunda insegurança jurídica e exigindo constantes revisões, caso a caso, do próprio STF.

Os efeitos do equívoco criado em junho pelo STF foram vividamente sentidos durante o julgamento sobre a competência da Polícia Federal para a celebração de acordo de delação premiada, a começar pelos próprios ministros da Suprema Corte. Cada voto foi de um jeito, como se cada ministro estivesse falando de uma realidade jurídica própria, sem qualquer conexão com a dos colegas. O que se viu no plenário do STF foi uma verdadeira bagunça. Nas ponderações de cada voto, a lei ganhava contornos muito vagos, como se pouco pudesse iluminar a questão. Em seu lugar, reluzia forte o arbítrio individual. É preciso retornar, o quanto antes, ao bom Direito, sem pudor de retificar eventuais e evidentes equívocos.

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