terça-feira, 26 de dezembro de 2017

Daniel Aarão Reis: Um brinde para Violeta

- O Globo

Ela nasceu em 4 de outubro de 1917, e veio ao mundo pobre de marré deci, em San Carlos, um vilarejo na periferia de Chillán, nos confins no Chile. O pai, insinuante e finório, boêmio, só gostava dos copos e do violão. A mãe dava duro na costura. A menina cresceu de pé no chão, zanzando por aí. Da mãe herdou as habilidades manuais. Do pai, o gosto pela música e pelo canto.

E assim, de bar em bar, na rua mesmo, em eventuais circos que passavam pelos remotos lugarejos, arrastando seus irmãos com ela, se fez cantora e violonista, sempre de ouvido. Em troca, os camponeses a aplaudiam, e lhe davam ovos e pão, às vezes, uma galinha e feijão, para aquela menina enérgica e decidida, corajosa.

O irmão mais velho, Nicanor, cedo se destacaria pela inteligência e pelo talento literário. Incentivado e apoiado, partiu para Santiago. Violeta, quando fez 15 anos, foi atrás. Pediu guarida, mas o tranquilizou: “Eu me sustento sozinha, com o meu violão”. Logo chamou os manos e com eles percorria casas de canto e de dança, bares e restaurantes, levando aos ouvidos distraídos dos fregueses e dos boêmios as canções populares que aprendera e ouvira do pai, dos amigos e familiares e das gentes dos campos.

Com muito trabalho, foi ganhando espaço e audiência. Como disse seu melhor biógrafo, Fernando Sáez, aquela voz afinada, algo áspera, estranha, sombria, terrosa, fora dos padrões, seduzia e encantava. Sempre que tinha um tempo, partia para os vilarejos à cata de músicas e canções. De cada viagem, vinha com uma colheita de joias raras do cancioneiro popular. Diziam das ilusões e das misérias da vida cotidiana, do trabalho duro, de Deus e do diabo, de seu combate eterno e apocalíptico, de sonhos e de amores que davam certo, alguns; outros, a maior parte, nem tanto. Trazia também, e nisto foi pioneira, os nomes dos autores e das autoras, o ambiente e a coreografia de cada canção, costumes e usos, comidas e bebidas associados, chegando inclusive a descobrir instrumentos musicais antigos, em desuso, como o chamado guitarrón, com 25 cordas agrupadas de cinco em cinco e que se tocam conjuntamente. E convidava as mulheres camponesas para conversar nos espetáculos, contar sobre as origens e as condições das músicas que cantavam: cuecas, tonadas, parabienes e esquinazos, cuartetas e décimas, chapecaos e mais polcas e mazurcas. Ao contrário de uma certa tradição idílica das relações nos campos, tecendo uma visão cor-de-rosa do que se convencionava chamar, de forma indulgente, de “folclore”, manifestação ingênua e “primitiva” de um povo “bom”, que aparecia para as elites através de mulheres e homens engalanados, Violeta mostrava o encanto da vida dos camponeses, mas sem disfarçar ou ocultar a dureza da vida que era a sua. E mudou inclusive a forma de se apresentar, com saias negras e blusas brancas, os vastos cabelos negros, entrançados ou soltos, realçando um rosto grave, olhos profundos e meio tristes.

E assim se fez conhecida aquela mulher e se tornou a melhor cantora do Chile: Violeta Parra.

Ganhou o mundo com seu canto. Fez sucesso em festivais internacionais, viajou pela Europa e América Latina. Mais tarde, herança materna, desabrocharam suas habilidades manuais em diversas manifestações: pintura, tapeçaria, escultura de vários materiais: barro, juta, arame fino, papiermâché. A consagração internacional viria em 1964, com a exposição de sua obra no Museu de Arte Decorativa, situado então no Palácio do Louvre: 22 tapeçarias, máscaras bordadas, retratos, pinturas e esculturas em madeira e barro evidenciavam um talento nada convencional, original, polivalente, e uma enorme capacidade de trabalho, fazendo daquela mulher uma estrela que aquecia sensibilidades, suscitando maravilhamento e admiração.

Conquistou vários homens, dois foram pais de seus filhos, mas não parecia encontrar no amor a plenitude com que sonhava. Reclamava da solidão e atribuía a ela “haver-se metido em tantos caminhos, tudo muito escuro e seco”. Um dia, decepcionada, cantou: “Amaldiçoo o alto céu, a lua e a paisagem... porque me aflige uma dor, amaldiçoo o vocábulo amor”. E lamentando a partida de Gilbert Favré, por quem teve grande afeto, afinal, não correspondido, intimou-o: “Quando fores casar, manda-me avisar a tempo; para fazer duas festas juntas, minha morte e teu casamento”.

Em dezembro de 1966, gravou um disco de maturidade, premonitoriamente intitulado: As últimas composições, entre as quais, “Gracias a la vida” e “Volver a los diecisiete”, que jamais serão esquecidas.

Quando conversava sobre o fim da vida, dizia: “As pessoas devem ter decisão em relação à morte, não esperar que ela venha, mas mandar nela”.

Violeta Parra mandou na morte. Corajosa como sempre, suicidou-se em 5 de fevereiro de 1967. Este ano faz 50 anos que ela desapareceu. Cem de seu nascimento. Não deixemos o ano terminar sem um brinde à sua vida.

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Daniel Aaarão Reis é professor de História Contemporânea da UFF

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