sexta-feira, 19 de janeiro de 2018

José de Souza Martins: O enigma de São Paulo

- Valor Econômico/ Eu &Fim de Semana

A maior e mais complicada cidade brasileira, que é São Paulo, completará 464 anos no próximo dia 25. A cidade continua sendo um enigma interessante em todos os sentidos. Mero povoado de taipa e de pau a pique até os anos 1880, capital de uma província de menor expressão econômica, pelo que não era e aparentemente nem seria, já se diferençava de outras localidades brasileiras que tinham real importância econômica e política.

Quando se examina em documentos pouco conhecidos as minúcias da história social paulistana do século XVIII, há curiosos desafios como o das práticas de dominação social que ao mesmo tempo desconstruíam as duas escravidões da época: a dos pardos indígenas e a dos negros africanos. Mas no cenário que parecia confuso, a sociedade se desenvolvia de modo lento e calculado, criando formas sociais inovadoras em situações sociais que pareciam manter tudo como sempre estivera.

Lugar por excelência da tão peculiarmente brasileira lógica dos opostos, foi onde a irrelevância econômica e política da localidade tornou-se aos poucos condição do possível. O Brasil moderno, republicano e desenvolvido teve sua versão peculiar na São Paulo conservadora, monarquista e mal ingressada nos enormes benefícios econômicos da expansão do café. E não na São Paulo liberal.

O país teve no paulistano Antônio da Silva Prado, conservador e monarquista, um dos artífices decisivos da inserção do Brasil no mundo moderno e da transformação da cidade numa cidade moderna. No fundo, foi um dos pais da sociedade republicana a seu modo, embora não tenha sido um pai da República. Para tirar os republicanos paulistas do impasse de serem pela República mas não serem pela abolição da escravatura, concebeu e montou a grande estrutura social de transição do trabalho escravo para o trabalho livre.

Num memorável discurso seu de 1888, no Senado do Império, definiu as bases da ideologia da ascensão social pelo trabalho que substituiria a chibata nas relações laborais pela motivação ideológica para que o trabalhador se integrasse na economia e dela se tornasse protagonista e cúmplice.

Isso colocaria entre parênteses a grande contradição entre o nosso capitalismo fundado na renda da terra e em relações de trabalho só parcialmente salariais. Um capitalismo a meio caminho entre a economia do antigo regime e a economia moderna. Mais de conciliação do que de conflito. O capitalismo que daria certo no Brasil, combinando concessões sociais retrógradas com lucros capitalistas modernos. Praticamente o oposto do capitalismo brasileiro dos dias atuais, hoje um capitalismo alucinado e socialmente irracional, voltado para o lucro a qualquer preço, devastador, apoiado na ceifa dos direitos sociais, na extensa marginalização do povo, insensível ao risco suicida de uma atualização econômica da concepção de lucro que longe de abrir-nos as portas de um futuro possível, anuncia o futuro para alguns e o nega para muitos.

Aquele capitalismo de transição, maquinado por paulistanos, como Prado, ao definir a integração do trabalhador na nova economia pós-escravista por meio da possibilidade da ascensão social, foi um meio de fazer da classe trabalhadora o principal instrumento de legitimação de uma concepção eficaz de capitalismo em condições históricas improváveis e adversas.

Imigrantes europeus e japoneses e migrantes internos oriundos do Nordeste, mas também de Minas, no curto período posterior à abolição da escravatura redefiniram completamente o cenário humano da cidade. São Paulo em poucos anos deixou de ser uma cidade apenas caipira, como havia sido, para se tornar uma cidade cosmopolita.

Pode-se viajar pelo Brasil inteiro unicamente frequentando a extensa diversidade das culinárias regionais dos restaurantes da cidade. Pode-se viajar pelo mundo indo às mesas paulistanas da mais variada culinária internacional. Ainda hoje, diferentes bairros têm diferentes sotaques.

É um engano supor que apenas imigrantes e migrantes pobres tenham vindo para a cidade de São Paulo. Já no século XIX, empresários e capitalistas do Nordeste e do Sul instalaram-se na capital paulista e fizeram no Estado seus investimentos. Pobres e ricos de todos os lugares tornaram-se paulistas e mesmo brasileiros em São Paulo, sem abrir mão de seu patrimônio cultural de origem.

A contrapartida dessa sociedade integrativa foi, aqui, a drenagem dos núcleos de tensão social em diferentes regiões do país, o que retardou as pressões por reformas sociais nos lugares de origem dos migrantes brasileiros. As elites políticas regionais, assim poupadas, puderam manter-se oligárquicas e retardar mudanças social e politicamente modernizadoras nos redutos de seu domínio.
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José de Souza Martins é sociólogo. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de “O Coração da Pauliceia Ainda Bate” (Ed. Unesp/Imprensa Oficial).

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