sábado, 13 de janeiro de 2018

Marco Aurélio Nogueira: A esquerda que não merecemos ter

- O Estado de S. Paulo

A mitificação corre solta, impulsionada por gente que se vangloria de ter uma inteligência superior, experiência política e boas intenções.

Do jeito que as coisas estão, não há como cogitar da afirmação de um competitivo campo de esquerda no Brasil.

Indo além: o movimento progressista está desnorteado, desarvorado, sem fibra.

A esquerda é um universo amplo, plural, integrado por muitas correntes, agregações e pessoas. Vai do liberalismo político democrático aos defensores do socialismo, de ambientalistas e ecologistas aos libertários, dos que lutam por direitos aos que querem igualdade e reconhecimento. É parte do progressismo, do reformismo, da democracia, ainda que nem sempre acerte os passos com tais plataformas.

Quando, porém, no Brasil, você para e olha, a impressão é que a esquerda se resume ao petismo, aos seguidores de Lula e aos correligionários do PT, com seus aliados, seus trânsfugas e seus satélites.

A simplificação mental é assustadora. Um mundo todo está acabando na política. Partidos e lideranças se desfazem por efeito das transformações estruturais do capitalismo e, no Brasil, dos desdobramentos da Lava-Jato e da crise do Estado e da política. Em vez de reconhecer isso, o esquerdismo prevalecente opta por vitimizar Lula e o PT: somente eles seriam “perseguidos”. Impeachment foi golpe, eleição sem Lula seria fraude, Lula estaria sendo condenado sem prova só para não poder se candidatar, a lawfare seria a adaga espetada em seu peito. Uma catilinária ilimitada.

Tudo isso é interpretado como expressão pura da esquerda, sem mais. Blogs, robôs, sites, mídia eletrônica organizam uma incansável campanha para ampliar o diagnóstico de que tudo só acontece porque a direita (jamais definida com clareza), os liberais, os socialistas democráticos, os partidos do sistema, decidiram atacar o PT e a esquerda, porque a Globo não gosta de Lula e quer dominar tudo, porque Sergio Moro é um partidário antipetista. Porque as elites resolveram sangrar a sociedade.

Estaria assim em marcha uma violenta guinada regressista, tradução brasileira do mesmo fenômeno que se veria no mundo. Direitos pisoteados, pobres sendo remetidos ao inferno da miséria, trabalhadores encurralados, superexplorados, tratados como animais, um cenário de horror. E, no meio dele, Lula e o PT lutando como verdadeiros patronos da Humanidade, que por eles, no mundo todo, torce apaixonadamente.

Consolidou-se assim uma nova faceta do mito global do redentor.

Não há mais crítica política. Muito menos autocrítica. Os iluminados, como se fossem escolhidos, sabem tudo, dominam os mares, voam mais alto. São “perseguidos” e, por isso, automaticamente purificados, desobrigados de analisar os próprios passos, os erros cometidos, as culpas que carregam. Toda exigência deveria ser suspensa para não facilitar o trabalho da “direita”. Durante os anos do petismo no poder, a crítica não podia ser formulada porque desestabilizaria e enfraqueceria o governo; depois do impeachment, ela é inadmissível porque serviria para fortalecer os “golpistas”. De negação em negação, de recusa em recusa, foi-se empurrando a sujeira para baixo do tapete.

A mitificação corre solta, impulsionada por gente que se vangloria de ter uma inteligência superior, experiência política e boas intenções. Converte-se Lula num factótum da perfeição, dono de uma racionalidade política jamais vista e de uma entrega total aos pobres. Passa-se uma esponja em pecados eventuais, na sede desmesurada por poder, no protagonismo centralizador, avesso a disciplinas e partidos. O mito assim forjado tem alguns pés de barro, devidamente ocultados para não estragar o enredo, mas nem por isso deixa de ser alimentado.

A convicção cega embota as mentes, a superficialidade do diagnóstico agita, mas não consegue esclarecer nem ativar um verdadeiro programa de luta e transformação. Vai-se por inércia, repetindo chavões e slogans fáceis, que se derramam como água, a um ponto em que tudo se converte em senso comum. Nesse momento, as pessoas simplesmente param de pensar. Deixam de ser autônomas, convertem-se em repetidoras passivas, que se lançam em embates infrenes contra tudo e todos.

Os que procuram complicar um pouco o argumento, ponderar ou encontrar um terreno de maior razoabilidade, são atacados sem pena nem consideração. São estigmatizados, convertidos em aliados de “golpistas”. Avança assim um rolo compressor dedicado a disseminar um tipo de pensamento único “progressista”, a martelar verdades tidas como absolutas, a promover polarizações sempre mais insanas e insensatas, a construir uma narrativa que beira a irracionalidade.

Todos seriam parciais: o MP, a PF, Moro e a Lava Jato, os juízes do TRF-4, a Justiça inteira, as instituições em seu conjunto, os delatores premiados, a mídia. Exagera-se e leva-se ao extremo uma estratégia “coitadista”, de vitimização.

O país? Ora, o país… O importante seria não perder o foco: salvar o líder redentor. Fernando Gabeira disse bem: “A esquerda decide lançar todas as suas fichas na salvação do líder num momento em que a maioria está preocupada com a salvação do País. Essa energia concentrada em salvar Lula deixa de lado algumas questões vitais que ela teria de encarar num processo eleitoral”.

O desprezo pela dúvida e pela opinião divergente culmina na redução delas ao imprestável, ao suspeito. Não haveria porque debater se o “outro” é visto como inimigo a ser destruído. É uma questão de fé.

Interditam-se assim posturas e iniciativas que poderiam ajudar a oxigenar o ambiente, a fazer avançar uma crítica mais realista, a tolerância, a busca de entendimentos para fortalecer o próprio campo da esquerda, revitalizando um patrimônio de afetos, agregações, sinergias. Para o pensamento único, a dissonância é incômoda.

Vez ou outra se ouvem vozes falando em “unidade das esquerdas e das forças populares” para frear o “governo entreguista” e impedir a “usurpação” que se anuncia com o julgamento político de Lula. É uma retórica rebarbativa, que não avança na compreensão do quadro e se perde na proposição abstrata de uma imprecisa “aliança nacional” para defender a democracia. Perorações desse tipo desaguam inevitavelmente na postulação do “direito” que teria Lula de disputar a eleição, porque ele é o líder supremo, amado pelo povo, pouco importando se cometeu deslizes, se vier a ser condenado, se tiver a ficha suja de acordo com a legislação em vigor.

Isso tudo acontece não só porque o esquerdismo prevalecente conseguiu acumular recursos e mostra competência na agitação e na propaganda. Acontece também porque a nossa época é uma época de lassidão crítica, de preguiça, de acomodação, de miséria intelectual. Uma época opiniática, em que cada um carrega a sua verdade e sua fé.

Acontece também porque os demais protagonistas do campo democrático e de esquerda – aquilo que se deveria chamar de esquerda democrática – não souberam se projetar e se articular, deixando o terreno vazio. Parte deles nem consegue se descolar do petismo lulista.

A desgraça maior é que ninguém sabe bem o que fazer.

Os esquerdistas acham que com a volta de Lula o sol voltará a brilhar e a emancipação será retomada. Não se dão sequer ao trabalho de verificar os dados e de perguntar ao Lula o que ele de fato fará se for eleito presidente.

Os que querem se diferenciar desse senso comum batem cabeça, ora se entregando ao encontro de um nome com que dar operacionalidade ao moderantismo de centro, ora abraçando bandeiras caras ao neoliberalismo, sem atualizá-las ou corrigi-las.

Uns e outros se acham autossuficientes. Atacam-se reciprocamente sem tréguas, e no correr da batalha deixam de lado o mais importante.

O mais importante? A defesa da democracia e de um reformismo realista, progressivo, consistente em termos programáticos, que nos permita repor o país nos eixos e disputar o futuro, coisa que somente será concebível se houver o concurso generoso de muitos. E, junto com isso, a colocação em marcha de uma reinvenção que nos faça voltar a ter orgulho de nos proclamarmos de esquerda.

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Marco Aurélio Nogueira é professor titular de teoria política na Unesp

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