quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

Paulo Fábio Dantas Neto* : A ética do tempo

Um artigo de Reinaldo de Azevedo sobre as circunstâncias da transferência de Sergio Cabral a um presídio em Curitiba foi uma lição de moral para a esquerda silente, mas também não deixa de ser uma esperança, por ser um jornalista assumidamente de direita que levanta sua voz, limpidamente, contra a humilhação ali imposta ao estado de direito que, com muito risco, sacrifícios e baixas, conseguimos construir no Brasil.

Para tentar explicar o aplauso de boa parte do povo àquele espetáculo fascista (o adjetivo aqui não é metáfora) pode-se recorrer à psicologia social; para entender a gana populista do jornalismo (seja na mídia tradicional seja no que medra em redes sociais) assim como a de inúmeros juízes e procuradores pode-se combinar alguma teoria política com lógicas da economia de mercado, de uma "sociologia das corporações" e teses sobre comunicação em sociedades de massa. Mas como se pode explicar o silêncio conivente de consciências individuais informadas e de associações civis que ainda gozam de uma autonomia material? Creio que ainda não há ciência disponível para analisar isso, pois se, por um lado, preferências políticas podem explicar que as atitudes diante da ofensiva cada vez mais insolente desse fascismo variem a depender do lado em que esteja a vítima da vez, por outro lado, nota-se (seja no silêncio acovardado, ou na passividade interessada) que está havendo um amoldamento dessas consciências a um "espírito de época".

A geração a que pertenço legou à dos nossos filhos uma democracia generosa, tolerante, pluralista, pontilhada de direitos e de impurezas. Que legado a geração dos nossos filhos deixará para os netos que nos nascem hoje? A idolatria a direitos, como se eles pudessem conviver com algum tipo de pureza e derivar de algum tipo de faxina? Uma concepção de lei que transforma automaticamente em criminoso quem a deixa de cumprir, mesmo que crime não haja, mas apenas uma contravenção?

Claro que agora não falei de Cabral, nem de Lula, mas abri um parênteses para falar de qualquer um de nós, que pode, sim, cometer uma contravenção da qual não tenha resultado, concretamente, prejuízos a ninguém, mas do mesmo modo estará exposto aos efeitos do predomínio atual dessa ética da punição máxima. Falo, por exemplo, de quem bebeu alguma coisa e resolveu levar o seu carro até em casa. Tendo transgredido uma regra, se flagrado, é justo que seja admoestado, multado, punido de algum modo. Mas preso? Preso sem que tenha havido realmente algum dano a outrem? Por que? Perdemos o hábito de diante de uma prisão perguntar primeiro qual foi a sua razão? Precisaremos passar de novo por uma ditadura para reaprendermos o hábito racional de comparar, contrapesar e dosar? A onipotência dessa ética justiceira de intérpretes voluntaristas do Direito e da Lei (ética que às vezes chega ao ponto de formar maiorias no Legislativo), julga-se capacitada até a julgar intenções. Pretende punir supostas intenções de matar como se assassinatos fossem e o impressionante conformismo das consciências conectadas acha isso, além de normal, moral.

Voltemos ao tema inicial. Até consciências discursivamente liberais ou esquerdistas vingam-se da opressão difusa que a todos nós impõe a ética da tolerância zero comprazendo-se - ou ao menos aliviando-se - com a imagem de Cabral acorrentado. Perde-se, nesse mecanismo de compensação psicológica, um mandamento civilizatório primário: o de ver-nos a todos como seres feitos do mesmo barro humano. Digo todos mesmo, incluídos aí Cabral e o pobre detido por acusação de furto que é violentamente obrigado, ainda na delegacia, a olhar para uma câmera de TV e expor-se a uma humilhação extra, para chacota e delírio de uma assistência doentia de um jornalismo policial populista. Nenhum desprezo que alguém sinta - seja por essas pobres pessoas suspeitas ou por algum político já condenado por corrupção - justifica, eticamente, que o Estado imponha a alguém, em nome do nivelamento de condições, semelhante humilhação negadora da civilização.

O texto de Azevedo precisa ser lido e digerido principalmente pelas cabeças - pretas, loiras e pouco grisalhas - que hoje experimentam os primeiros passos na arte de governar (ou, de algum modo, decidir, a partir das corporações que integram) cometendo o equívoco de confundir essa arte com ciência ou doutrina. Essas jovens cabeças, não mais adolescentes, precisam com urgência se tornar politicamente adultas. Estão cada vez mais firmemente situadas nos variados quadrantes dos andares médios e elevados dessa sociedade plural e desse estado democrático de direito, dos quais usufruem graças à obra de cabeças onde hoje predominam cabelos brancos e de almas curtidas, hoje angustiadas ao verem a obra correr o risco de se afundar na intolerância, no ressentimento e na vingança. É normal e salutar que novas gerações assumam o comando.

Mas é salutar também que o façam em compromisso com a experiência das antigas e com a liberdade das futuras. Duro desafio é posto à geração à qual pensamos estar confiando a missão de cuidar da democracia. Ela corre risco, se não acorda a tempo, de legar a seus filhos uma sociedade depurada de tudo que é humano.
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* Cientista Político e professor da UFBa.

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