sexta-feira, 12 de janeiro de 2018

'Precisamos de pacto fundado na Carta'

Por Malu Delgado | Valor Econômico

BRASÍLIA - Não há como conversar com Ayres Britto sem ter a Constituição de 1988 como protagonista. O ex-presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), cargo que exerceu entre 2012 e 2014, parece saber de cor todos os artigos do texto. Ela é a "mola ejetora" que pode tirar o Brasil do atoleiro, diz o jurista no "À Mesa com o Valor". Sua proposta para a eleição de 2018 é um pacto nacional fundado na Constituição, que completa 30 anos.

Um compromisso político e econômico, respaldado por empresários, dentro da lógica do "capitalismo social", aclamado na Carta. Seria uma saída, o "óbvio ululante", diz, para nos livrarmos do "atoleiro e acertarmos o passo das nossas instituições". O ex-ministro deixa escapar, sutilmente, entusiasmo por uma candidatura do colega Joaquim Barbosa. Sobre sua própria candidatura à Presidência, Britto diz que lhe falta "pulsão" para a empreitada e que seria mais natural um nome surgir da própria esfera política. "Não sou hipócrita. Meu nome tem surgido. Fico feliz, desvanecido, agradecido, honrado etc., mas tenho que dizer o seguinte: para isso é preciso pulsão, vontade", diz. "Eu não tenho essa pulsão. Não me disponho oferecer meu nome."

O pacto do poeta
A causa do atraso explica muito sobre a personalidade de Carlos Ayres Britto. Enquanto é aguardado em um restaurante vegetariano em Brasília, o ex-presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) telefona avisando que teve um imprevisto, mas logo chegaria ao local. O "imprevisto", descobriria-se algum tempo depois, era um ipê, de floração amarela, há muito residente na casa do ex-ministro na capital federal. Quando finalmente já estávamos almoçando no restaurante Villa Vegana, Ayres Britto, com seu forte sotaque sergipano e uma serenidade ímpar incutida na voz, esclareceu a questão: "Olhe, vou lhe dizer. Teve chuva de raios aqui em Brasília há poucos dias. E afetou muito um ipê nosso, que tombou por cima das grades da entrada da nossa casa. E eu estou tentando salvar o ipê, eu e a minha mulher. Gostamos muito dele, tem ninho de passarinho há muitos anos".

Depois de contar sobre os cuidados especiais com alguns passarinhos que não conseguiram voar e também sobre o casal de corujas que mora em seu quintal, o jurista, cujo nome desponta como uma possibilidade para a eleição presidencial deste ano - mais provavelmente numa composição de chapa, como vice -, comemora: "Pois hoje finalmente encontramos uma saída para o ipê. Vamos replantá-lo lá no quintal da casa. E estou muito feliz. Se eu não salvasse esse ipê, me sentiria cometendo crime de 'ipeculato'", concluiu, dando suaves risadas por causa do providencial neologismo penal.

Ayres Britto sente-se à vontade no local. Ele e sua mulher, Rita, são frequentadores habituais do aprazível restaurante vegetariano, localizado entre árvores, dentro de um clube no Lago Sul, região onde a cúpula do poder costuma viver em Brasília. O gerente avisa que "o ministro" já tem lugar cativo no restaurante, mas para este "À Mesa com o Valor" optamos por outra mesa maior, até porque o convidado trouxe um amigo e ex-juiz como companhia. Vegetariano há três décadas, ele próprio explica o funcionamento do bufê do restaurante. Sugere uma caminhada após almoço para a conversa ser ainda mais agradável, mas a chuva incessante no território candango naquela tarde faz com que o plano seja revisto.

O ex-ministro serve-se de arroz integral, mix de farinha com chia, feijão à moda da casa, conserva de batata assada com alecrim e disco de lentilha. Ao lado do prato modesto, coloca a Constituição, que completa 30 anos em 2018, toda escrita, sublinhada, rabiscada, comentada. É apenas mais um das centenas de exemplares que possui do livro, que nos acompanhará ao longo de mais de três horas de conversa. "Vou querer uma aguinha saborizada", pede ao garçom. Apesar do prato singelo, faz comentários sobre o menu: "Rita adora esse bobó de palmito deles. Pode repetir se quiser, viu?".

A política e as eleições de 2018 demoram a entrar no cardápio. Antes disso, é a verve de poeta e os hábitos de um vegetariano meditante que invadem a prosa, fluida como a leveza do entrevistado. Antes de dar a primeira garfada, ele mostra um versinho digitado no celular: "Há dedos de prosa que merecem anéis de brilhante". Conta que escreve versos o dia inteiro e que, com o tempo, adaptou-se totalmente à tecnologia do celular. Anota no smartphone as brincadeiras que faz com o vernáculo.

Para o jurista de 75 anos, que já teve como companheira de muitas horas uma máquina de escrever Olivetti, inclusive durante a elaboração de sua tese de doutorado, a celeridade tecnológica não soa assustadora.

"É engraçado como o cérebro da gente vai se adaptando às tecnologias. Você já não manuscreve, digita. Eu andava meio preocupado comigo. Deixo de ler, convenhamos, a não ser poesia e direito, para ver. Porque no celular a gente não lê, a gente vê. E eu digo: mas será que esse ver, que não é ler, vai facilitar a obtenção do conhecimento ou só da informação?", indaga. "Nós somos maravilhosamente versáteis", concluiu.

Não há como conversar com Ayres Britto sem ter a Constituição de 1988 como protagonista. O ex-presidente do Supremo, cargo que exerceu no biênio 2012-2014, parece saber de cor todos os artigos do texto constitucional - "ela nasceu adiposa, com 245 artigos na parte permanente e 70 artigos na parte transitória", ensina.

Para tudo o que comenta, tasca em seguida um artigo da Constituição. "Até para jogar peteca ele leva a Constituição", brinca o amigo Ricardo César Mandarino Barretto, juiz que trabalhou com Ayres Britto no STF. Por vezes, o jurista acrescenta ainda o parágrafo e o inciso da Carta Magna em seus comentários. Destina a ela os mais sublimes elogios. Admite que, no passado, chegou a criticá-la. Hoje, porém, vê na Constituição o caminho para a salvação nacional.

"Já fiz artigos criticando a Constituição. No início ela dependia de cem leis ordinárias. Eu a chamei de Constituição paraplégica. Ela privilegiou os direitos individuais, comparados com os direitos sociais. Eu achava que devia privilegiar os sociais, porque eles são mais definidores da qualidade de vida das pessoas", afirma. "Depois comecei a ver que ela é uma grande casa, arejada mentalmente, democraticamente, humanisticamente. Uma grande casa com janelas de oportunidades para todos os lados. Tem uma lógica interna, uma base de inspiração que quando a gente revela se torna marqueteiro dela. É interessante."

A Constituição, segundo o ex-ministro, é a "mola ejetora" que pode tirar o Brasil do atoleiro. "Há muitos anos, num dos meus livros, escrevi que o fundo do poço tanto pode ser de areia movediça quanto de molas ejetoras. A depender de quem despenca, né", recorda-se, sempre entre risadas. "Uso esses meus versos para dizer que se estivermos no fundo do poço, como muitos afirmam, as molas ejetoras são a Constituição. Essa Constituição tem virtudes suficientes para nos reerguer, para segurar essa barra, essa queda, e nos ejetar de volta para o alto." E eis que surge, então, a grande proposta de Ayres Britto para a eleição de 2018: um pacto nacional fundado na Constituição.

• Essa Constituição tem virtudes suficientes para nos reerguer, para segurar essa barra, essa queda, e nos ejetar de volta para o alto

O pacto nacional sugerido por Ayres Britto é, segundo o próprio explica, "um chamamento do país à ordem constitucional, um chamamento ético, administrativo e de desempenho". É assumir compromissos públicos e políticos para que os princípios republicanos previstos na Constituição, em especial a legalidade, a impessoalidade, a moralidade, a publicidade (transparência) e a eficiência sejam perseguidos e cumpridos pelos governantes. Um compromisso político e econômico, respaldado também por empresários, dentro da lógica do "capitalismo social", aclamado na Carta, sustenta. Seria uma saída, o "óbvio ululante", segundo ele, para nos livrarmos do "atoleiro e acertarmos o passo das nossas instituições".

"Temos condições de colocar os pontos nos is de nosso vocabulário ético, penal e administrativo. E está fácil. Como? Vamos nos sentar em torno desta mesa-redonda e buscar uma agenda para chamar de nossa. Enquanto não fizermos isso, cada qual tem sua agenda, subjetiva." Sobre esse pacto ele já conversou com alguns dos personagens das eleições presidenciais deste ano, como Marina Silva (Rede), Joaquim Barbosa - também ex-presidente do STF e cotado como candidato à Presidência -, Ciro Gomes (PDT), Cristovam Buarque (PPS), Álvaro Dias (Podemos), entre outros. Afirma que tem bons amigos e interlocutores no PT, como o ex-ministro da Justiça José Eduardo Martins Cardozo, mas é reticente quando se toca no nome do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que lhe indicou para o cargo de ministro do Supremo.

"Lula eu encontro muito esporadicamente em solenidades. E nos cumprimentamos, com toda gentileza." Mas ambos não conversaram sobre o pacto nacional. E por quê? Ayres Britto reage com uma risada, quase autoexplicativa. E se justifica: "Na verdade, eu nunca procurei espontaneamente nenhum [dos políticos e prováveis candidatos]. Não tomei a iniciativa de procurar nenhum destes contatos". Deixa claro que o caminho foi o inverso, ele é que foi procurado por políticos que tem "em muito boa conta" e que estão preocupados com "o divisionismo perigoso do país". "O Brasil está tensionado mesmo, friccionado, sectarizado. Porém, eu entendo que estamos nos encaminhando para um discurso comum", reitera, otimista inveterado.

O ex-presidente do Supremo deixa escapar, sutilmente, seu entusiasmo por uma candidatura do colega Joaquim Barbosa e admite ter tido muitas conversas com o presidente do PSB, Carlos Siqueira, a quem chama de "criatura adorável". O PSB é visto como uma possível morada futura tanto para Ayres Britto quanto para Barbosa, caso se encorajem a participar da eleição presidencial. Ele também cita com certa deferência o nome de Marina Silva. Sobre sua candidatura à Presidência, diz de maneira direta que lhe falta "pulsão" para a empreitada e que seria mais natural um nome surgir da própria esfera política. "Não sou hipócrita. Meu nome tem surgido. Fico feliz, desvanecido, agradecido, honrado etc., mas tenho que dizer o seguinte: para isso é preciso pulsão, vontade. Os gregos diziam assim: 'Entusiasmo é Deus dentro da gente'. E acho que era Goethe que dizia: 'Entusiasmo é a alma em fogo'. Eu não tenho essa pulsão. Não me disponho oferecer meu nome."

A falta de apetite vale tanto para o cargo de presidente quanto para o de vice. Mas e se houver excesso de demanda, apelos partidários, comoção por um nome fora da contaminação política? "Não faça essa pergunta, não. Vou lhe dizer: me sinto mal. Parece que eu sou um desertor. Eu não sou, de jeito nenhum. Eu estou na luta. Isso me faz lembrar T.S. Eliot dizendo pra si mesmo que não desertava dos ideais, mas reconhecia as dificuldades para quem persiste. A frase dele é a seguinte: 'Num mundo de fugitivos, quem toma a direção contrária é quem parece estar fugindo. Não é bonito isso?" Se o caminho não é a deserção, Ayres Britto se mostra completamente disposto a colaborar com algum projeto presidencial que tenha como escudo a Constituição, sendo candidato ou não.

Depois deste almoço, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) sugeriu que alguns dos prováveis candidatos à Presidência em 2018, entre eles Marina Silva e Joaquim Barbosa, os interlocutores centrais de Ayres Britto, busquem um consenso nacional para evitar o pior e que "forças extremadas" se engalfinhem "para ver quem entre vários será o novo líder". O alerta do tucano foi interpretado como um apelo político para evitar tanto a ascensão de Jair Bolsonaro (PSC-RJ) quanto o retorno de Lula.

Com elegância magistral, Ayres Britto deixa clara sua interpretação sobre a Lei da Ficha Limpa e a legitimidade da condenação em segunda instância, sem nunca citar diretamente uma eventual candidatura de Lula, que irá a julgamento no dia 24. Sobre a Ficha Limpa, corrobora a decisão do STF, de que a lei pode retroagir a casos anteriores a 2010, quando foi promulgada. "Quando a Constituição diz que a lei penal não retroagirá, salvo se beneficiar o réu, o destinatário desta norma proibitiva da retroação judicial é o indivíduo, o ser humano, a pessoa natural. O candidato é diferente. É a sociedade. O candidato não quer representar a si mesmo, ele quer representar a coletividade. E para ser representante da sociedade, e não porta-voz de si mesmo, ele tem que ter biografia, vida pregressa. Candidato é cândido. Eticamente, candidato é limpo, é puro. Candidatura é candura, limpeza, pureza ética." A representação coletiva exige biografia, ressalta o ex-ministro.

Numa democracia, sustenta ele, o ideal é que o espectro de candidaturas seja o mais largo possível. "Agora, há condições de inelegibilidade, como há causas de inelegibilidade. No caso aí [de Lula], uma condenação criminal com trânsito em julgado seria causa de inelegibilidade, porque deflagraria a aplicabilidade da Lei de Ficha Limpa. Mas não quero entrar neste mérito, não. Não quero antecipar pontos de vista", encerra o raciocínio, para não se indispor com o ex-presidente petista.

Também evita polêmicas e frases enfáticas sobre uma eventual perseguição política a Lula e tratamento assimétrico no Judiciário contra o petista. "Acho que o Judiciário, hoje, trabalha sob o intenso acompanhamento social. Tendo a encarar as coisas com certa naturalidade. Acho normal o encurtamento de distâncias na tramitação de processos que têm a ver com uma eleição presidencial. É preciso ver se há assimetria ou não nas coisas", pondera, notando que não fez levantamentos estatísticos sobre o caso específico do petista.

De acordo com Ayres Britto, a aceitação sobre a necessidade de se fazer um pacto nacional, por ora, germina em ritmo razoável. "Não na velocidade e na intensidade correspondente ao meu desejo. Não. Mas eu não estou dizendo que essa ideia vai triunfar. Mas é discutida. Não só no meio jurídico. Na política também. Eu tenho interlocutores na política, e o número é grande", diz, contundente.

• Meu nome tem surgido. Fico feliz (...), mas tenho que dizer o seguinte: para isso é preciso pulsão, vontade (...) Não tenho essa pulsão

"Hoje vou encarar a sobremesa de vocês", interrompe a conversa, dirigindo-se ao garçom. Bolo de laranja com creme de café e chocolate ou creme de coco com damasco? "Essa é boa. Esse creme com damasco. Porque eles não usam açúcar refinado, não! É aquele demerara, né, que vocês usam? É um açúcar melhor para a saúde", informa o vegetariano. Poucos minutos depois, o garçom aparece com uma novidade e avisa que também há no cardápio do dia o creme de pão com sagu de uva. "O que é que vocês acham? Eu vou nessa!", decide-se, sem esperar o endosso coletivo pela sobremesa escolhida.

O Brasil, afirma o magistrado, retomando a conversa, tem a mais moderna e progressista Constituição do mundo. E é ela, acrescenta, que vai blindar o país de qualquer retrocesso social e político. Antes de explicar mais detalhadamente o pacto nacional que propõe, Ayres Britto cita exemplos da solidez da Constituição.

"Se eles disserem, a golpes de emenda, que a mulher grávida por efeito de um estupro não tem o direito de interromper voluntariamente a gravidez, e que a mulher grávida mesmo sob risco de vida não pode interromper a gravidez, isso é violação de cláusula pétrea. Percebeu? Isso faz parte de direitos e garantias individuais asseguratórios da dignidade da pessoa humana."

O ex-presidente do Supremo não é explícito, mas refere-se à proposta de emenda constitucional (PEC) 181, aprovada em comissão especial na Câmara, por articulação da bancada evangélica, e que provocou uma polêmica nacional por propor mudanças na Constituição e criminalizar o aborto, mesmo nos casos já previstos por lei. "A dignidade da pessoa humana, e ninguém disse isso ainda não, estou dizendo a você pela primeira vez, é cláusula pétrea."

Para Ayres Britto, "a mulher estuprada não tem estrutura psicológica para continuar com a gravidez, porque enxerga na gravidez a revivescência da brutalidade de que ela foi vítima". Pedir que ela prossiga com a gestação, continua o jurista, "é imprimir tratamento cruel e desumano à mulher". Artigo 5º, cláusula pétrea, ele reforça, e pede que eu leia em voz alta: "Ninguém será submetido à tortura e nem a tratamento desumano ou degradante". "É cláusula pétrea", ele reitera.

É por essas e outras que o ministro pede cautela aos que invocam como solução da crise política a realização de uma nova Assembleia Nacional Constituinte. "Tome muito cuidado com o que você vai pedir a Deus porque ele pode atender, né?", diz, mais uma vez mergulhado em suas marcantes gargalhadas. As atuais figuras do Congresso Nacional não merecem muitos comentários do ex-ministro. Quando lembrado que a Assembleia Constituinte de 1988 tinha figuras políticas como Ulysses Guimarães, Mário Covas, Bernardo Cabral, Afonso Arinos, o ex-presidente do Supremo reforça o alerta: "Pois, eu digo: minha gente, cuidado. Você sabe como começa uma Assembleia Nacional Constituinte, mas você não sabe como termina. E nessa onda muito conservadora do mundo, os mais discriminados historicamente, os mais pobres economicamente falando, vão experimentar mais dificuldades". E quais seriam as consequências de uma Assembleia Constituinte com os atuais protagonistas da cena política? "Olhe...", limita-se a dizer o sergipano. Ayres Britto mostra-se descrente com a possibilidade de o atual Congresso imprimir mudanças constitucionais relevantes que tirem da Carta Magna suas características progressistas. "Ah, se mudarem aí vai ser um desastre. Mas acho que nem isso eles vão conseguir."

Mesmo entre artigos, incisos e parágrafos, a prosa com o ex-ministro segue agradável, permeada por citações de poetas e frases que ele costuma levar consigo como ensinamentos da vida. Ele admite que, atualmente, tem alguns "hiatos mentais". Um dia desses quis citar Oliver Wendell Holmes a uma plateia de estudantes de direito e se perdeu. Buscou correndo a frase de Holmes no Google, em seu celular. "Não sei de que inabilidade eu fui capaz que veio aqui ao meu celular o nome de Ivete Sangalo. Eu digo, ai, meu Deus... Daí comecei a falar da musicalidade baiana, e a frase de Holmes veio", contou, rindo alto de si mesmo.

Convidado a voltar a explicar o que seria esse pacto nacional, ele invoca Bertolt Brecht e Rui Barbosa. Garante que Brecht está implícito na Constituição, porque "a vida civilizada só pode gravitar em torno de instituições, e não em torno de pessoas". Compreende-se, em seguida, a relação com o dramaturgo alemão: "Triste de um povo que precisa de heróis. Triste de um povo que precisa de líderes de chefes. Isso leva ao compadrio, fisiologismo, clientelismo, caudilhismo, esses ismos que infelicitam a vida historicamente". Rui Barbosa foi ainda mais primoroso que Brecht, opina. "Ele disse: 'Salvação, sim, salvadores, não. Fui na jugular, né? Nós queremos instituições. Imprensa, por exemplo. Ministério Público, enquanto instituição. Legislativo, cumprindo suas funções enquanto instituição. Qualquer governante que chegue, qualquer presidente da República, se cumprir as prioridades que já estão aqui [na Constituição] passará à história como estadista. As prioridades já estão aqui."

Ayres Britto enfatiza, todo o tempo, que a Constituição tem duas lógicas centrais, duas bases de inspiração que o tal pacto nacional precisa seguir e observar: "O pensar grande e o pensar alto". "Pensar alto para proteger quem está por baixo nas relações sociais. Somos uma sociedade assimétrica, discriminatória, discriminadora. Então uma das lógicas elementares da Constituição, em matéria de direitos sociais, é essa: proteger quem está por baixo. Muito bem. Aí vêm os diversos dispositivos constitucionais favorecendo as mulheres, os negros, os que têm problemas físicos maiores, os pobres, os homossexuais", pontua, com didatismo professoral.

Depois, ele decifra o pensar grande, que é "proteger o pequeno". Migra para o artigo 170 da Constituição. "Diz que quem deve receber tratamento favorecido são as pequenas empresas, as micros. Olha que lógica espetacular! No fundo, são elas que dão mais emprego e democratizam o capital. O capital deixa de ser elitista para ser mais democratizado. Espetacular: pensar alto para proteger quem está por baixo. Pensar grande é proteger o pequeno."

O restaurante já está completamente vazio, e mudamos de mesa para nos proteger da chuva. Quando a reportagem do Valor pede a conta, ela já havia sido paga por Barreto, contrariando a tradição da seção. "Fica acertado o seguinte", diz Ayres Britto: "Vocês ficam nos devendo um almoço, mas esse aqui é irreversível".

O ex-ministro segue, animado, citando a Constituição, seus poetas e pensadores favoritos e, claro, sua proposta de pacto nacional. "Olhe, como operacionalizar isso, metodizar, não é fácil. Eu acho que a democracia... está todo mundo interessado em discutir isso." Ele pede mais uma aguinha saborizada - "eles põem um limãozinho nela" - e nos pergunta se temos tempo para ouvi-lo ainda mais. Indagado sobre quem seria o responsável por tentar conduzir essa ideia de pacto nacional, ou entre políticos, ou entre empresários, e se ele próprio se encanta com a ideia de liderar a proposta, Ayres Britto tergiversa: "Eu não diria alguém, agora. Sabe o que é isso? Isso é uma ambiência".

O "marqueteiro" da Constituição brasileira enfatiza que ela tem como princípio mais alto a democracia, e é exatamente por isso que deve unir correntes políticas em torno deste pacto nacional. "A democracia como credo jurídico. A nossa bíblia jurídica e o nosso credo político. Chega a ser burrice não enxergar isso e não tirar partido desses dois trunfos. Se nós professássemos ao credo da democracia a mesma confiança e o mesmo rigor e entusiasmo com que professamos os credos religiosos, estaríamos bem."

Ayres Britto diz não ter saudades do Supremo. "Por definição, eu não faço planos e tenho muita facilidade para cortar o cordão umbilical com o passado." O que lhe permite focar somente no presente, diz, é a meditação, que pratica também quase há 30 anos. O vegetarianismo quase que automaticamente o levou à meditação, mas foi o livro "A Semente de Mostarda", do indiano Osho, que o colocou no caminho da prática. O vegetarianismo veio antes, e é um capítulo curioso na vida do ex-ministro, o qual ele classifica de "experiência mística".

"Eu morava em Aracaju e tinha uma casa de praia. Umas duas da tarde, por aí, estava encostado numa rede, meio sentado, meio deitado, lendo um livro. Aí de repente eu vi no ar, assim como se fosse na televisão, uma legenda fugidia, móvel, ia e vinha: 'Nunca mais inflija sofrimento a um ser vivo'." O magistrado chamou Rita aos gritos e pediu que ela lesse a legenda móvel. A mulher nada enxergou. "De fato, não havia mais nada. Relatei a ela o ocorrido. Tive uma alucinação. E daí?, ela me perguntou. E eu disse: daí é que a partir de agora eu nunca mais vou infligir sofrimento a um ser vivo para fazer o meu cardápio. Se tiver olho, eu não como." De fato, nunca mais consumiu carne. "Eu não renunciei a nada. É como se eu fosse vegetariano desde sempre." A meditação, explica, lhe ajuda a viver dia após dia sem fazer planos futuros. Não por acaso escreveu em um de seus livros que não tem planos, só princípios. No presente, ele adora viver em Brasília e não tem vontade de voltar à praia. "Já morei à beira do rio, em Propriá, Sergipe, onde nasci. Morei à beira do mar, em Aracaju. Moro à beira do lago. E me recuso morar à beira do caos", diz o jurista poeta, mais uma vez mergulhando em sorrisos.

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