segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

*Marcus André Melo: O voo do pato manco

- Folha de S. Paulo

“Intervenção” é assombração. “É o tema mais controverso da Velha República, mais que estado de sítio”, segundo Afonso Arinos. As intervenções ocorriam quando havia conflito nas eleições estaduais —disputa pelo privilégio de apoiar o governo federal, como alertou Vitor Nunes Leal.

Ao contrário da Argentina, que tem história de intervenções sob regime democrático: Irigoyen (em 10 das 14 províncias) e Menem (em seis) foram os campeões.

No Brasil, a última havia sido em 1924. No Rio de Janeiro, após a eleição de 1922, cuja vitória era disputada por dois governadores, um da oposição estadual que fora empossado pela Assembleia Legislativa e outro da situação que tomou posse munido de um habeas corpus do STF. Mas o primeiro era apoiado pelo presidente Artur Bernardes, que anulou o resultado, nomeou um interventor e convocou novas eleições. Vencidas pelo primeiro, é claro. No mesmo figurino ocorrera a primeira, em 1914.

Em Mato Grosso (1906) uma facção ganhou a eleição, após assassinar o governador em exercício, gerando uma crise.

Em Pernambuco (1911), o grupo dominante vence a eleição por pequena margem, mas populares apoiados pelo Exército rebelam-se contra o governador que foge da cidade.

Na Bahia (1920), os coronéis na “Revolução Sertaneja” não aceitaram a reeleição do governador J. J. Seabra por pequena margem e ameaçam atacar Salvador (mas no acordo de Lençóis garantiram que “teriam direito” a um senador e dois deputados).

As intervenções garantiam que os revoltosos alinhados com o governo central prevalecessem mesmo quando a pedido de interesses contrários (caso da Bahia e Pernambuco). Exceção é o Ceará (1914) em que a oligarquia dos Acioli —com a ajuda do Padre Cícero— derrubou o interventor.

A intervenção no Rio é ação de dois patos mancos —um estadual e outro federal. Ao contrário das intervenções pretéritas, não há conflito político algum. Não se trata de disputa entre titãs regionais. Coronéis e padres contra oligarcas. Ou bacharéis carcomidos contra vetustos generais, como em Pernambuco. É o conluio de dois liliputianos.

A intervenção é o voo do pato manco federal. O que resta do seu mandato era como uma bicicleta: se não “pedalasse” —isto é, mantivesse uma agenda ativa de iniciativas—, cairia. A reforma da Previdência era a pedalada de maior fôlego. Permitiria atravessar o deserto.

Para o pigmeu estadual, a intervenção equivale a extrema-unção de seu governo, marcado pelo colapso fiscal, moral e administrativo. A intervenção é o conluio de pigmeus políticos em estado terminal. Só a esquerda acha que é um bicho-papão. Em 1922, o Rio tinha dois governadores, em 2018 não tem nenhum.
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*Doutor pela Sussex University, é professor titular de ciência política da UFPE

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