sábado, 24 de fevereiro de 2018

Rosiska Darcy de Oliveira: Pacificação

- O Globo

Se a intervenção falhar, uma sociedade tomada pela exasperação poderia recorrer a uma candidatura truculenta

A intervenção das Forcas Armadas na segurança do Rio, bem ou mal recebida, é um fato consumado. É muito possível que a decisão sobre a intervenção tenha atendido aos baixos interesses políticos de um presidente em agonia e seus acólitos contumazes que, mais que tudo, temem a prisão. A ninguém surpreenderia uma manobra fria e manipuladora urdida nos porões do Jaburu.

Muitas das reações contrárias à intervenção obedecem à mesma lógica do interesse político, perguntando quem ganha e quem perde em seus cálculos eleitoreiros. Lula chamou a atenção para as oblíquas pretensões eleitorais do presidente. Bolsonaro bravateou que ninguém roubará sua bandeira, como se a segurança tivesse dono. O interesse político há muito se dissociou do interesse público. A população só é visível quando as pesquisas de opinião traduzem as tragédias em prováveis votos futuros.

Do ponto de vista da população desamparada por serviços públicos em frangalhos, sofrendo na carne a violência, a questão é saber se este fato consumado será o ponto de inflexão, o freio no descontrole da segurança pública sensível no aumento da violência, territórios dominados pelo tráfico e paralisia da polícia minada pela corrupção. Ou uma bala de prata que, errando o alvo, provoque o efeito contrário, a aceleração de todos esses processos nefastos.

Estamos, portanto, diante de uma situação de altíssimo risco em que não cabem precipitações que ponham tudo a perder. Inteligência, perseverança, bom senso e capacidade de escuta serão necessários aos responsáveis da intervenção.

Se a intervenção na segurança fracassar, uma sociedade convivendo com a barbárie no seu cotidiano, tomada pela exasperação, poderia recorrer a uma candidatura truculenta que aumentaria o caos, levando de cambulhada direitos e liberdades.

Há uma aposta possível na capacidade operacional deste Exército brasileiro que, nas palavras do fundador do Viva Rio, Rubem César Fernandes, que trabalhou com os militares na bem-sucedida missão de paz no Haiti, se reinventa como força de estabilização e de pacificação. Pacificação é o que se espera das Forças Armadas no Rio de Janeiro.

A intervenção na segurança pública tem motivado em pessoas desesperadas com a espiral da violência uma retórica guerreira. Reação explicável por um imenso cansaço, pelo desgaste das esperanças e pela confessa incapacidade do governo do estado de defender a população contra o crime organizado, encastelado em territórios ocupados, e contra o crime desorganizado que se espalha, epidêmico, em um ambiente propício de desordem e impunidade. E pelo medo com boas razões partilhado por toda a população. Essa retórica guerreira, no entanto, seria como apagar um incêndio com gasolina. O desespero, ainda que compreensível, é péssimo conselheiro.

As Forças Armadas estão assumindo uma grave responsabilidade. Se a intervenção na segurança pública for, de fato, um impulso na reconstrução do Rio, a dimensão policial e militar precisará ser completada por um leque muito mais amplo de ações sociais, como há anos vem sendo dito e redito por todos que se debruçam seriamente sobre o desafio da segurança.

Escolas, creches, postos de saúde, trens e ônibus dependem para funcionar da garantia da ordem pública. No caos em que estamos vivendo, restabelecer a ordem pública, reduzir a violência e estancar a corrupção é o começo, o meio e o fim do processo de pacificação.

A atitude da população do Rio não pode ser a de vítima inerte ou espectadora atenta. Sua participação não atenderá a uma receita que alguém lhe dê como tarefa. Cabe a ela mesma a autoria de suas iniciativas.

A expectativa positiva da maioria da população coexiste com a desconfiança, em muitos, de que a legítima aspiração à paz seja mais uma vez frustrada. Os fatos falarão por si. A confiança se constrói no tempo. O monitoramento das operações de pacificação é essencial na construção da confiança. Este é o papel das lideranças comunitárias, da mídia e de todos aqueles que, na democracia, têm o direito de opinar sobre o que afeta suas vidas. Quanto maior a interação entre os militares e a população, melhor, cabendo à Justiça o exercício de sua função de balizamento dos limites da lei, como ocorreu no debate sobre a legalidade do mandado coletivo de busca e apreensão.

O futuro é incerto, sabemos, mas é sempre pelas brechas da incerteza que a esperança se infiltra. O Rio de Janeiro é resistente. Agora, mais do que resistir, é preciso pacificar. Reconhecer a queda, não desanimar e dar a volta por cima.

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Rosiska Darcy de Oliveira é escritora

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