quinta-feira, 29 de março de 2018

Bernardo Sorj: Da indignação à intoxicação coletiva

- O Globo

A estratégia é clara: em primeiro lugar caluniar, desacreditar, insultar e difamar todos os políticos, menos, obviamente, aqueles que eles apoiam

A indignação é um sentimento moral fundamental. Ela expressa nossa revolta frente a atos que ferem nossos valores e que devem ser combatidos. Em 2013, as pessoas que saíram às ruas, identificadas com as mais diversas correntes ideológicas e reivindicações, eram a expressão coletiva de um sentimento de indignação com as disfunções do poder público, em todos os níveis. Num curto período de tempo, a indignação deu lugar à intoxicação coletiva.

Esta é produto do sentimento de impotência, da frustração com a incapacidade de transformar a indignação em propostas positivas e agendas que indiquem o que deve ser feito para transformar a realidade. O intoxicado é alguém que perdeu sua autonomia, que deixou de pensar para se transformar num zumbi que se alimenta de ódio, que transformou a raiva contra o estado de coisas num fim em si mesmo, que xinga no lugar de refletir, que se satisfaz em culpar o outro sem assumir responsabilidades.

Entender como chegamos a este estado de coisas exigiria uma longa análise, mas certamente a intoxicação coletiva se acelerou após o impeachment. Os que apoiavam o governo defenestrado encontraram uma tábua de salvação nos slogans contra o “golpe” e no “Fora Temer”, eludindo assim o debate interno, que parecia incontornável, sobre os desastres do governo Dilma e os processos de corrupção. Por sua vez, a grande massa que apoiou o impeachment logo se sentiu traída pela associação do novo presidente com condutas impróprias e a uma equipe enlameada. Abriam-se as comportas para transformar os indignados em intoxicados.

Se a disposição foi criada pela dinâmica política, a intoxicação é produzida por profissionais produtores de mensagens tóxicas, que se difundem nas redes sociais. A estratégia é clara: em primeiro lugar caluniar, desacreditar, insultar e difamar todos os políticos (menos, obviamente, aqueles que eles apoiam, políticos especializados em capitalizar ódio e frustração). Em segundo lugar, reduzir todos os problemas do país à “culpa” dos políticos denunciados. Assim, problemas como melhoria da qualidade da educação e da saúde pública, promoção da inovação tecnológica, eliminação de privilégios em setores do funcionalismo público, reordenamento da segurança pública, desenvolvimento de infraestruturas e a reforma do sistema político, para mencionar somente alguns exemplos, deixariam de existir se fossem retirados da vida pública os políticos “culpáveis”.

A campanha que hoje vivemos nas redes é muito mais nociva, pois se transferiu do Facebook para o WhatsApp. No primeiro, os efeitos negativos já eram sentidos pela tendência de criar bolhas nas quais as pessoas viralizam mensagens que confirmavam suas crenças. Ainda assim, havia espaços para comentários e respostas públicas àqueles que as postavam. O Facebook tinha também uma eficácia limitada, pela quantidade enorme de mensagens recebidas, e que nem sempre chegavam aos destinatários por causa dos sistemas de edição da empresa. No WhatsApp, as mensagens chegam individualmente ao destinatário, com maiores chances de serem lidas, pois aparecem como um comunicado pessoal, mas sem possibilidade de serem respondidos publicamente. Sendo seu conteúdo criptografado e sua divulgação “não pública”, é impossível controlar, regular ou monitorar efetivamente a utilização do WhatsApp.

A democracia é o único regime no qual a indignação pode ser expressada publicamente, permitindo que ela se transforme num primeiro passo para a solução dos problemas que a sociedade enfrenta. Quando a indignação dá lugar à intoxicação, escorregamos na direção de líderes e discursos autoritários.

Como avançar no sentido da desintoxicação coletiva? Isso exige um esforço de todos para recuperar nossa capacidade de reflexão, deixarmos de xingar e passarmos a discutir e analisar propostas para melhorar o país, em lugar de procurar culpados. Exige que os meios de comunicação, sem deixar de informar, apresentem mais debates e analises sobre os problemas e possíveis soluções, para que os cidadãos formem opinião e façam escolhas mais informadas e refletidas. Dos cidadãos, a desintoxicação exige que deixem de retransmitir mensagens que não ajudam a pensar e cujo único objetivo é nos manter intoxicados.

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Bernardo Sorj é sociólogo

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