domingo, 4 de março de 2018

Cacá Diegues: Uma jovem democracia

- O Globo

Apesar do excesso de alguns militantes de todos os lados, homens públicos que não estão na cadeia por ladroagem estão muito mais dispostos a aceitar as regras do jogo

Uma contribuição decisiva do pós-modernismo para o entendimento do tempo em que vivemos é a formulação da vida vivida como um espetáculo, tanto na esfera privada quanto, sobretudo, na pública. E esse mundo do espetáculo não poderia evitar a política, o espaço em que ele se movimenta por excelência.

Hoje, a ideia de “democracia representativa” corresponde muito menos a poderes eleitos livremente pelo povo para que o representem do que ao próprio conceito teatral de representação. O político contemporâneo, visto por um pensador pós-pós-modernista, será sempre muito mais um ator num palco diante de grande plateia ululante, do que um autêntico representante sereno dessa mesma plateia.

O fenômeno talvez possa acontecer menos em democracias mais antigas, meio cansadas desse exibicionismo que acaba sempre em algum populismo enganador. Mas, nas “jovens” democracias, aqueles regimes que vivem entrando e saindo de ditaduras com certa frequência, cada vez que suas elites decidem não acreditar na capacidade da população de escolher seu próprio rumo, nessas democracias inaugurais a “representação” é sempre uma ilusão que se desfaz antes que caia o pano e os atores possam ir relaxar nas coxias.

A gente se esquece de que no Brasil, por exemplo, vivemos grande parte do século XX debaixo de algum regime de força, mais ou menos disfarçado. Na virada do século, ainda dependíamos do poder dos senhores de terras, os cafeicultores que se vingaram da Abolição e do fim do trabalho sem custo fazendo proclamar a República. Uma sucessão de presidentes — eleitos através de atas falsas e o voto dos fazendeiros que também votavam por seus empregados — dominou um país sem opinião pública, durante a chamada República Velha.

Em 1930, uma revolução liberal, comandada por jovens oficiais que tentavam modernizar o Exército brasileiro, transformou-se em cruel e sangrenta ditadura burguesa, sob o comando de Getúlio Vargas. O Estado Novo de Vargas, nomenclatura política inspirada no regime fascista italiano de Benito Mussolini, foi inaugurado em novembro de 1937 e durou até 1945, quando o ditador é deposto por movimento civil e militar. Getúlio ainda volta ao poder, eleito democraticamente em 1950, como um líder popular e nacionalista de esquerda, o que pouca gente conseguiu até hoje entender completamente. Inclusive eu.

Arrependidos de seu neogetulismo, os líderes militares trataram de planejar a queda do regime democrático, o que começou a acontecer com o suicídio de Vargas em agosto de 1954, se consolidando finalmente com o golpe de 1964 e a consequente ditadura que durou até março de 1985. Agora façam as contas. Durante os cem anos do século XX, o Brasil viveu plenamente sua sempre jovem democracia por apenas 32 deles, bem menos da metade do século. E olhe lá!

Já o século XXI tem sido um pouco mais generoso conosco. Pelo menos até aqui. Apesar dos movimentos raivosos de boicote ao Plano Real, do terrorismo político contra a eleição de Lula e do próprio impeachment sofrido por Dilma, quase tudo, na medida do possível, vem sendo feito dentro da Constituição e das leis, à luz dos princípios democráticos. Apesar do excesso de alguns militantes de todos os lados, os homens públicos atuais que não se encontram na cadeia por ladroagem estão muito mais dispostos a aceitar as regras do jogo, a perder uma mão para não perder a partida.

Ótimo exemplo desse desprendimento cívico está na entrevista recente de Lula à “Folha de S.Paulo”. Mesmo os que desejam vê-lo na cadeia, mesmo os que tratam como um pesadelo a possibilidade de ele se tornar candidato e presidente, têm que reconhecer sua firme confissão democrática: “Quem sabe eu virasse um moleque de 16 anos e fosse dizer que só tem solução na luta armada. Não. Eu acredito na democracia, eu acredito na Justiça”.

O contrário dessa confiança no regime democrático está naqueles que, sem reflexão, demonizam a intervenção militar na segurança do Rio de Janeiro. Parece uma repetição de tudo que acabou com o projeto das UPPs, um projeto que precisava do apoio de todos para fazer com que o poder público o completasse com educação, saúde, saneamento, subindo os morros pelas portas abertas pela segurança. Em vez disso, as UPPs foram tratadas como uma ocupação militar das favelas, como agora fazem com a intervenção do Exército.

É ridículo considerar a intervenção como uma “jogada eleitoral”. E se for, o que é que tem? Toda ação positiva de um governo será sempre, por definição, uma “jogada eleitoral”. Ou então os governos ficam condenados a não fazerem nada de positivo, para não serem mal interpretados. Ainda não sei dizer se a intervenção no Rio é uma boa para a cidade, acho que é cedo para ter certeza sobre o assunto. Por enquanto, apenas torço para que dê certo.

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Cacá Diegues é cineasta

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