sexta-feira, 2 de março de 2018

José de Souza Martins: O trem

- Eu & Fim de Semana | Valor Econômico

Orientado pelo "Guia Levi", um minucioso guia ferroviário, ao meio-dia e cinco minutos do dia 4 de janeiro de 1958, um sábado, pelo trem da Companhia Paulista, embarquei na Estação da Luz, em São Paulo, para Bauru. Dali, pela Noroeste, para Corumbá, na fronteira com a Bolívia. De lá, pelo Ferrocarril Brasil-Bolívia, para Santa Cruz de la Sierra. Depois, de ônibus, subi os Andes até Cochabamba.

Finalmente, de trem, pelo altiplano árido, cheguei a La Paz. E, ainda de trem, fui até as ruínas de Tiahuanaco, antiga cidade de uma civilização pré-incaica. Por sua Porta do Sol, nos equinócios, o sol nasce precisamente em seu centro, demarcando o ano solar de 365 dias, desde antes de Colombo chegar à nossa América.

Era minha travessia de adolescente rumo ao coração triste e pobre da América do Sul. Uma viagem entre o olhar alegre e festivo dos passageiros na Luz e o olhar triste de índios cabisbaixos e curvados, a carregar nas costas objetos pesadíssimos nas ruas íngremes de El Alto, em La Paz. Como no tempo da conquista, mascavam coca para aliviar o peso do destino e da história. Era uma viagem ao nosso passado. O hoje e o ontem se tocavam ao longo da ferrovia.

Poesia e miséria estavam bem distribuídas no correr do caminho. Na primeira noite, no Pantanal do Mato Grosso, a lua rebrilhava na superfície da água escondida sob a vegetação. Aqui e ali, sombras e perfis de animais noturnos. Passageiros contavam histórias. Uma sociedade temporária se formara nos carros da Noroeste, entre o dormitório e o restaurante.

Nos confins do território brasileiro, num velho hotel de Corumbá, a janela de meu quarto se abria sobre o rio Paraguai, chalanas navegavam lentamente. Nas ruas e construções, o tempo ainda parado em corroídas evidências da Guerra do Paraguai.

Quando atravessei a fronteira, fazia apenas cinco anos que ocorrera a revolução do Movimento Nacionalista Revolucionário, que levara Paz Estenssoro à Presidência da Bolívia e Siles Zuazo à vice. A revolução tentava descolonizar o país e trazê-lo ao mundo moderno. Seu primeiro decreto aboliu a servidão da população indígena e determinou a reforma agrária. Desmontava a Bolívia colonial.

Episódios da viagem foram delineando para mim uma narrativa própria da literatura do absurdo. O trem levou uma semana para percorrer os 658 km entre Corumbá e Santa Cruz. Parou, de repente, num descampado, duas horas depois de deixar Roboré. Um passageiro ficara para trás. Uma hora depois o retardatário chegava, a cavalo, na garupa um menino que levaria o cavalo de volta. Ali, nos confins da América, a velocidade do trem era menor do que a da montaria.

Num anoitecer, não foi possível atravessar o largo rio Mamoré, tributário do Amazonas. Uma enchente levara a ponte provisória e precária. Teríamos que esperar a manhã do dia seguinte, para passar o rio de canoa. A maioria dos passageiros desembarcou e embrenhou-se na mata. Os que ficamos embarcados ouvíamos o som de uma festa lá longe. No dia seguinte, passageiros embriagados eram procurados no mato, caídos, em sono pesado. Eram na maioria contrabandistas de Melhoral, de Gilette, de cigarros Continental. Haviam levado consigo toda a bebida alcoólica que acharam. Encontraram um boi desgarrado, mataram-no e o churrasquearam. Houve baile a noite inteira. O trem da nossa travessia esperava bêbados e retardatários.

Em Santa Cruz, compartilhei o táxi para o hotel com uma senhora brasileira e a filha. Ficou apertado. Na frente ia o motorista e o dono do carro, seu patrão. O dono não trabalhava. Apenas mandava.

A Bolívia que o trem me mostrou já não existe.

Eu tivera o bom senso, ainda no Brasil, de comprar uma passagem de avião de Cochabamba a São Paulo, com escala de uma noite em Santa Cruz. Após a visita às escavações arqueológicas de Tiahuanaco, viajei de trem para Cochabamba, quase sem dinheiro. O trem chegou à cidade tarde na noite fria. Sem saber para onde ir, segui um grupo de índios que aparentemente estavam procurando pouso.

À porta do que parecia um cortiço, uma velha índia anunciava: "Entrem, filhinhos, aqui há lugar para todos". Pagava-se a hospedagem ali na porta. Iríamos dormir todos num mesmo quarto sem porta, aspirando o fedor de uma privada também sem porta. Havia uma só cama, de casal. Para que coubéssemos todos os nove, dormimos atravessados, um ao lado do outro, pernas para fora, meus colegas de cama resmungando palavras em quíchua.

Depois de 21 dias do início da viagem, eu desembarcaria em Congonhas, com pneumonia, de um DC3 da Cruzeiro do Sul. Descobrira a América e suas temporalidades desencontradas, o moderno apenas arranhando a lógica persistente da conquista e do atraso. O passado tão perto, o presente tão longe.
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José de Souza Martins é sociólogo. Professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de “Moleque de Fábrica” (Ateliê Editorial).

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