- O Globo
Defender a igualdade, como fazia a vereadora, é crime passível de morte no Brasil. Roubar recursos públicos, porém, pode levar, no máximo, a prisões domiciliares
Na terça-feira, 13 do corrente, fui ao médico. Ao sair da Região Oceânica de Niterói, onde resido, para o bairro de Santa Rosa, local do consultório, passei pela Garganta — uma estrada estreita e perigosa entre um abismo e um morro salpicado de moradas pobres, das quais nos envergonhamos, mas aceitamos com as gritarias e as hipócritas indignações de sempre.
Nesse espaço no qual é impossível retornar e onde o trânsito segue entupido, surgiram dois homens. Um deles usava uma touca ninja, portava na mão direita uma submetralhadora e com a mão esquerda ordenava que o trânsito desse passagem para ele e para o seu companheiro, cujo rosto estava igualmente mascarado. Seria o chefe, comentamos, tomando consciência do nosso pavor. “Temos sorte”, disse meu companheiro, porque se naquele momento surgisse um carro da polícia, haveria troca de tiros e poderíamos ser atingidos.
Tal como ocorreu no dia 14, no Cachambi, onde o empresário Claudio Henrique Costa Pinto e seu filho menor, depois de uma consulta médica, tiveram o infortúnio de serem abordados por bandidos no momento em que passava a polícia. Na troca de tiros, o pai foi morto, e o menino, em desespero, viveu mais uma rotineira tragédia carioca.
Assimilamos a aparição tenebrosa e seguimos tranquilamente para a minha consulta esquecidos (como faz parte da vida) do nosso maligno estilo de vida.
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Fui assaltado duas vezes à mão armada. Na primeira, três jovens trêmulos levaram uma pasta com o meu salário de pesquisador professor do Museu Nacional. Não havia na pasta os milhares de reais a que ficamos acostumados nesta metástase moral que infesta o Brasil. Não! Era apenas o dinheiro ganho com o trabalho de lecionar e procurar entender culturalmente grupos tribais e a sociedade brasileira.
Na segunda vez, levaram relógios: o meu e o do meu companheiro, com quem eu acabei comemorando o fato de estarmos vivos, porque o assalto foi no intervalo de um sinal de trânsito no centro da cidade. Um profissional armado com um revólver de alto calibre, o assaltante não tremia. O motorista nos acalmou com a palava de ordem que hoje domina o Brasil: fiquem calmos.
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Embora tenha passado perto da morte por assassinato, meu caso é normal (!!!). Fui poupado do cruel destino da defensora de direitos humanos, a vereadora Marielle Franco, cuja morte não foi aleatória, mas programada.
Defender a igualdade, como fazia a vereadora, é um crime passível de morte no Brasil. Roubar recursos públicos por meio do controle dos instrumentos de mando e do cargo público (dominando os fatos), porém, pode levar, no máximo, a prisões domiciliares.
A nossa orientação cultural está definitivamente do lado da desigualdade e do privilégio. Opor-se à injustiça está — quero crer — mudando, mas continua a ser um tabu. Sobretudo se tal bandeira for levantada por mulheres e pretos que ousam desafiar a hegemonia de uma secular cultura de subordinação.
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O assassinato de Marielle estremeceu minha alma. Ser lembrado de que Marielle fez seus estudos de Sociologia no Departamento de Ciências Sociais da PUC-Rio, do qual faço parte como professor e pesquisador, e orientada pelo meu querido colega Ricardo Ismael, reacende a esperança de que o ensino honesto e sem má-fé ideológica produz gente com o espírito de uma Marielle, brutalmente vitimada pela violência que ela combatia.
Espero e quero estar seguro de que o assassinato de Marielle tenha o poder de mudar essas rotinas de violência e de subordinação.
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Metástase é a proliferação descontrolada de células cancerosas, base dos tumores malignos. O assassinato de uma defensora de direitos humanos eleita pelo povo da sua cidade é um atendado à democracia. É também a prova cabal de como a violência tornou-se moeda corrente no Rio de Janeiro e no Brasil. O assalto que viola a propriedade e a vida do cidadão espalhou-se. Virou metástase.
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Nas últimas décadas — a prova disso é a operação Lava-Jato —, o crime mudou de endereço. Passou dos espaços marginais para o centro de uma administração pública cujo modo de operar é a chamada “corrupção sistêmica” — nada mais do que uma metástase. Não há dia no qual não se tenha notícia de um delito cometido por algum alto funcionário ou governante, o que é, de fato e de direito, um horror, uma vergonha e um terror — um assassinato brutal da democracia.
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Roberto DaMatta é antropólogo
O texto retrata bem o momento atual. Meu desânimo aumenta se completarmos o chamado estado de movimento newtoniano: para onde vamos, e a que velocidade.
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