sexta-feira, 27 de abril de 2018

José de Souza Martins: Adeus à democracia?

- Eu & Fim de Semana | Valor Econômico

Aqui se fala muito em classes sociais e em luta de classes. Mas o mundo atual já não é o mundo em que as classes sociais nasceram e, enquanto tais, tiveram eficácia histórica, que foi o dos países que se industrializaram nos séculos XVIII e XIX. Submergem elas na extensa trama de mediações que vieram para o primeiro plano na vida cotidiana da sociedade contemporânea. É o dos fatores e motivos das demandas coletivas: gênero, idade, religião, categorias falsamente raciais, variadas expressões das novas identidades e da diferenciação social supérflua. As necessidades sociais que movem a história atual do Brasil não são, propriamente, as que Lefebvre e Heller definem como radicais. A história atual é uma história de cumplicidades na reiteração do mesmo.

Apesar de um imaginário centrado no pressuposto frágil de que as classes sociais são ainda ativas, têm elas uma eficácia quase que meramente explicativa, cuja compreensão depende de recursos sociológicos distantes da teoria das classes sociais. Nas condutas coletivas de hoje, é difícil reconhecê-las como protagonistas de propósitos e de demandas. Não obstante, existem. Substancialmente, expressam a desigualdade econômica, de um lado, e a coexistência social baseada na igualdade jurídica dos cidadãos, de outro. No desequilíbrio dessa contradição é que a política instaura o equilíbrio que se chama democracia, a concertação de superação da diversidade tensa.

Mas, entre nós, os dilemas de agora ainda refletem a forma retardatária e anômala como a estrutura de classes sociais chegou até nós e aqui se difundiu quando ainda não tinha cabimento. Na demora cultural e social dessa anomalia, em consequência, democracia não tem sido aqui o respeito de conviver com o outro e com a diferença que ele representa. Aqui é o desrespeito de aniquilar o outro, na hegemonia destrutiva e antidemocrática do mando. É o espetáculo do momento.

Em amplas áreas do território brasileiro a sociedade de classes sequer chegou a se realizar e a dominar. Têm elas permanecido à margem de suas possibilidades políticas, como lugares de um Brasil residual e incompleto. Mesmo a região do que é hoje o ABC paulista, o lugar em que a indústria se difundiu rapidamente e extensamente desde fins do século XIX, as classes sociais estiveram submersas num cotidiano de conflito laboral mediado e atenuado por valores comunitários, religiosos e familiares e pela mentalidade que lhes corresponde.

Isso explica por que os dirigentes das ações da luta de classes sejam entre nós, com frequência, pessoas bifrontes, sujeitas a metamorfoses sociais que as levam a oscilar e a desencontrar-se consigo mesmas. Ou então, pessoas da classe média, que usurpam o sistema conceitual próprio do operariado para o desempenho de uma práxis imitativa pouco consistente, eivada de exageros de teatro amador de periferia. É a política do supérfluo e do voto farto e populista.

O que estamos vivendo neste momento é o resultado final desse extenso desarranjo histórico. Tudo é apresentado como um grande embate entre direita e esquerda, entre as elites e os trabalhadores, entre coxinhas e mortadelas. Rótulos vazios de um conhecimento sem conteúdo. Tudo expressão de preconceitos e de falsa consciência. As distorções são imensas, expressões de um pensamento autoritário disfarçado que nos arrasta para a incerteza do abismo antidemocrático.

Neste momento, se compararmos os dois pré-candidatos com maiores opções de voto, Lula e Bolsonaro, veremos que tanto seus discursos quanto o perfil de seus constituintes são autoritários e intolerantes. No que se refere aos indícios de personalidade básica de um lado e de outro, vemos facilmente que são iguais, ainda que um seja definido como de esquerda e o outro como de direita. Essencialmente, nada os diferencia, a não ser a superficialidade ideológica substancialmente de opostos.

É significativo que nenhum dos dois fale em democracia nem defina que compromisso têm eles com a concepção de um verdadeiro regime democrático. Se a ambos somarmos boa parte dos candidatos de menor expressão, igualmente autoritários, na direita e na esquerda, a partir das pesquisas de opção eleitoral, teremos que pelo menos 50% dos votos são de inspiração autoritária e antidemocrática. Esse número pode chegar a 60% dos votos ou mais.

Nesse sentido, tudo fica dependendo de que surja um candidato aglutinador, com uma indiscutível bandeira democrática, que consiga convencer o eleitorado da importância da democracia, da liberdade de pensamento e de divergência, e do direito à diferença. Se isso não acontecer, no curto tempo que nos resta, o Brasil estará entrando no beco sem saída de uma democracia de papel.
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José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de “A Política do Brasil Lúmpen e Místico” (Contexto).

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