sexta-feira, 20 de abril de 2018

José de Souza Martins: Máscaras da história

- Eu & Fim de Semana | Valor Econômico

Os melancólicos e contraditórios acontecimentos destes dias de pessimismo e desesperança, dentro de alguns anos estarão nos livros de história que ensinarão às novas gerações uma concepção certinha do que hoje parece sem sentido. Uma história sem o peso dos fatos e dos fatores que envergonham os que vergonha têm. Nela não haverá corrupção, fraude, mentira, enriquecimento ilícito, injustiça, exploração dos frágeis, genocídio de índios e escravidão que persiste 130 anos depois da Lei Áurea. Será apenas a história pasteurizada dos cúmplices ou dos ingênuos. Uma história sem passado nem agora. Sem contradições, sem povo e sem cidadãos.

Tudo o que agora é incerteza, dúvida e falta de clareza, nas páginas desses livros será retilínea certeza de uma história que teria fluido serena e evolutivamente até o limiar do futuro. Não somos preparados para interrogar e conhecer os segredos e irrelevâncias do processo histórico: o meramente acidental que se tornou principal, as tramas inconfessáveis, sussurradas nos recantos escuros de lugares suspeitos, não vistos nem sabidos, onde nosso destino tem sido traçado bem longe da nossa consciência social e política.

Podemos rever episódios decisivos de nossa história, cujas ocultações aos livros escolares não têm a gravidade de episódios de dinheiro sujo escondido na cueca para pagar traficantes de influência e mercadores de votos. Nem os da mão leve dos pagadores de propina remunerando a desonra dos venais.

Mas desde há muito tramas invisíveis definem o que fomos e somos. Na Biblioteca Britânica há um documento de 1805 em que é exposto um plano de remover para o Brasil o príncipe herdeiro, dom João de Bragança, e sua esposa espanhola, Carlota Joaquina. E aqui induzi-los a proclamarem a independência das colônias portuguesa e espanholas de modo a assegurar o mercado do novo mundo para a economia inglesa.

Finalmente, no dia chuvoso de 27 de novembro de 1807, a família real e a corte embarcariam para o Brasil em navios ingleses. Objetos abandonados, príncipes e fidalgos correndo na lama, pois as tropas francesas já entravam em Lisboa. A rainha, dona Maria I, oficialmente a louca, lucidamente advertindo os membros da comitiva: "Não corram! Vão pensar que estamos fugindo!". Única pessoa a se lembrar das regras de decoro a que estão obrigados os mandatários de uma nação.

No dia 7 de setembro de 1822, o príncipe dom Pedro, voltando de Santos, após subir a penosa Serra do Mar, em trajes simples, montado numa mula, que era como se viajava, penando com um incômodo intestinal, proclamou sua ruptura com as cortes de Lisboa. Só naquela noite um grupo de jovens paulistas, no Teatro da Ópera, mostrou-lhe que havia proclamado a Independência do Brasil, o que só ficará claro em outubro.

O roteiro inglês de 1805 ia sendo cumprido. Pedro Américo pintaria em Paris um quadro fantasioso sobre o nascimento da nação, "Independência ou Morte", hoje no salão nobre do Museu do Ipiranga. A mula da realidade política foi ali transformada no cavalo majestoso de nossa alienação nascente. Dali em diante, teríamos que ser o que queremos parecer, e não o que somos de fato.

Na manhã de 15 de novembro de 1889, Manoel Deodoro da Fonseca estava na cama, doente. Alguém veio avisar que a tropa se amotinara no Campo de Santana. Saiu de casa às pressas, acabando de vestir a farda na rua. Chegou ao local do motim, mandou um soldado apear do cavalo, montou e ergueu a espada para mostrar quem estava no comando. Depois, foi ao recinto em que o gabinete estava reunido e depôs o governo. Voltou para casa e foi para a cama. Só à noite um ajudante de ordens trouxe-lhe uma pergunta de altos oficiais do Exército. O que havia feito de manhã: havia deposto o governo de um regime parlamentarista ou havia deposto o imperador?

No cômodo em que estava aprisionado com sua família, percebendo o risco que corria e para evitar uma guerra civil, dom Pedro II negociou a retirada da família imperial do Brasil. Enquanto Deodoro era solicitado a decidir o que havia feito, dom Pedro decidia e assegurava o advento da República.

Em 2002, o que fizemos? Elegemos o último operário de uma classe social em metamorfose, em justa ascensão social e política e em distanciamento em relação à tese já menos verossímil da luta de classes? Ou elegemos o primeiro signatário da bandeira branca contida na Carta ao Povo Brasileiro?

A história republicana do Brasil será uma história marcada por episódios contados e, afinal, consagrados numa versão cosmética do acontecido. Estamos compreendendo a Carta ao Povo Brasileiro nestes dias de julgamentos e de Operação Lava-Jato. Reler Maquiavel, e não Marx, ajudará a compreender tudo.
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José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de “A Política do Brasil Lúmpen e Místico” (Contexto).

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