sexta-feira, 6 de abril de 2018

José de Souza Martins: O processo

- Eu &Fim de Semana/Valor Econômico

Na direita, assim chamada, milhões de brasileiros desiludidos e alienados querem Lula na cadeia já. Nem mesmo percebem que a Justiça processa Luiz Inácio, não Lula, que são diferentes personificações do processo político. No extremo oposto, outros milhões de brasileiros irados e também alienados pressupõem que crime de esquerda não é crime e querem seu herói livre da possibilidade de prisão para que volte ao poder.

Entre os extremos, há o silêncio do processo, quebrado apenas no vozerio dos julgamentos. A lei, que o sustenta, reconhece, mesmo a quem já condenado em segunda instância, o direito aos recursos nela previstos. É o mesmo direito que tem os que urram e berram por soluções extremistas e ilegais. Lei é lei. Berro é outra coisa, bem aquém da civilidade.

Para entender este complicado momento da história política brasileira, talvez seja o caso de reler "O Processo", de Franz Kafka. Luiz Inácio não é Josef K., a personagem do romance. Mas o é também. No cenário atual, todos somos Josef K. Todos fomos detidos e acusados naquela misteriosa manhã em que surgiam as primeiras informações do que veio a ser chamado de mensalão. Porque ou votamos nele ou não tendo nele votado reconhecemos a legitimidade de seu mandato. Na democracia é assim: simples e complicada.

Desde então, todos os dias, como Josef K., quando levantamos e nos preparamos para ir ao trabalho intuímos que o olho de um poder oculto nos diz que somos o avesso do que julgávamos ser. Urros e berros das multidões inquietas, de "direita" e de "esquerda", estão muitíssimo longe do drama político brasileiro e mesmo do drama pessoal de Lula.

Na pessoa do ex-presidente, somos interrogados sobre os mistérios do poder. E quanto mais respondemos, mais nos desculpamos e mais nos sentimos culpados. Falta saber culpados de quê. Os acusados e condenados da Lava-Jato sabem o que fizeram, mas os processos caminham com base em evidências indiretas, delações pela via torta da infidelidade, a obra dos manipuladores ocultos do malfeito.

Lula temeu a possibilidade desse momento. Revelou seu temor naquele documentário que João Moreira Salles fez a respeito de sua trajetória. Quando, já finalmente eleito presidente da República, declarou que queria ter meia hora para refletir sobre quem seria ele após a Presidência da República.

Ele intuía, no limiar da travessia, que, do lado de lá, já não seria ele mesmo. De certinho retrato de pintura acadêmica, sairia como retrato pós-moderno. Tudo sugere que ele temia o poder, com razão, justamente o contrário de seus milhões de constituintes, no PT e fora dele, que na alucinação política do mando, equivocadamente, achavam e ainda acham que o poder, sendo deles, pode tudo. Não pode.

Estas horas difíceis, que se iniciaram com o mensalão e tem seu apogeu cada vez mais dramático na Operação Lava-Jato, mostram que o poder não é a pessoa que o ocupa transitoriamente. O poder é o conjunto das instituições, das leis, a Constituição, os códigos, os funcionários da lei. O poder é sempre maior do que quem se deixa fascinar pela cadeira que o simboliza. O poder é performance e personificação. Lula está fora do poder, mas ainda se imagina nele, o que nele dificulta a ação política que dos políticos se espera.

No entanto, a Justiça vai, lentamente, mostrando-lhe quem manda. No STF vai ficando claro, também para Lula, que é a Justiça que decide quem ele é. Não a rua. Mesmo que a Suprema Corte decida que, por enquanto, ele não vai para a cadeia. Não irá para a cadeia não porque tenha direitos que outros não têm, mas porque a Justiça está sendo benevolente ao considerá-lo ficção do poder. Mesmo ganhando, sairá perdendo. Esse é o aspecto doloroso do processo.

A crua realidade da história faz isso com todos os que um dia são chamados a desempenhar um papel diferente daquele a que estavam acostumados. Numa sexta-feira chuvosa de 1889, dia 15 de novembro, dom Pedro II acorda imperador do Brasil e anoitece prisioneiro, sem destino, sem segurança nem mesmo sobre as condições de sobrevivência de sua família. Getúlio Vargas, que o PT já execrou e agora quer imitar, dormiu mal aquela noite de agosto de 1954, mas amanheceu presidente da República. Antes do café da manhã, do dia 24, estava morto com um tiro que dera no próprio peito.

Mesmo absolvido ao fim de um processo judicial que poderá ser longo, Lula estará condenado. Viverá todos os seus dias até lá temendo que lhe batam à porta, que o sucessor do japonês da Federal tenha ido buscá-lo. Até esse dia, se ele chegar, Luiz Inácio terá sido prisioneiro do tormento da incerteza. O condenado confinado atrás das grades invisíveis do seu próprio medo difuso, perguntando-se: medo de quê?
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José de Souza Martins é sociólogo. Professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de “Moleque de Fábrica” (Ateliê Editorial).

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