domingo, 8 de abril de 2018

Sérgio Besserman Vianna: Desigualdade

- O Globo

Contraditória a posição da ‘esquerda’ contra a prisão em segunda instância, privilegiando salvar o Lula

Retornando do exílio imposto pela ditadura militar, o professor Darcy Ribeiro caminhava pela Avenida Atlântica com uma amiga norueguesa. Sua amiga, no caminhar, observa: “Olha que homem bonito.” E o professor Darcy: “Onde?” Ela: “Ali.” Ele: “Cadê?” Ela: “Ali, bem na esquina”. Ele: “Não estou vendo...”

E então caiu a ficha: era o sorveteiro da Kibon. Corajosamente, ao contar essa história, Darcy Ribeiro retirava a verdade de debaixo das cobertas. Para um brasileiro da elite, mesmo sendo de esquerda, o sorveteiro não aparecia naturalmente na mente como um candidato a “homem bonito”.

Vivi uma história parecida que marcou para sempre, a ferro quente de afeto, minha alma. Era o réveillon da anistia, 1979. Meus pais resolveram receber muitos que retornavam do exílio e promover o “réveillon da anistia”.

Festa e muita alegria. Papai era um dedicado anfitrião e ficava de lá para cá conversando, contando piadas (bom nisso) e servindo. Basicamente uísque.

No dia seguinte, primeiro do ano, logo antes do almoço, meu pai me chama, sozinho, e me diz: “Senta aí que eu tenho algo sério e importante para te contar”. Segue a história, análoga à do professor Darcy Ribeiro.

A trabalhadora doméstica que estava ajudando era a Luísa, maranhense e já uma amiga. Faltando alguns minutos para a meia-noite, papai vai correndo à cozinha pegar gelo para os muitos scotches sendo bravamente consumidos. Luísa então o encontra e diz:

“Doutor Luis...”

E meu pai me conta de forma que lembro como se fosse ontem: “Eu então perguntei:

‘Que é Luísa, tá faltando alguma coisa?’ E os olhos dela encontraram os meus, um frio percorreu minha espinha e gelei. Entendi e me condenei. Abracei forte a Luisa e disse: ‘Feliz ano novo, muitas alegrias e muito obrigado por tudo’. Assim somos no Brasil. Meu filho, é preciso estar sempre atento para não sucumbir ao que nós somos e termos chance de mudar isso.”

Analogamente, é absurdamente contraditório o posicionamento da “esquerda” contra a prisão em segunda instância, privilegiando salvar o Lula (sem entrar no mérito de outros argumentos), frente a uma questão central para a luta contra a desigualdade no Brasil.

Não estou argumentando juridicamente sobre qual a interpretação mais correta da Constituição a respeito. Se há um contraditório, mais ainda de metade contra metade no STF, é claro que há margem para interpretação.

Alguém gostaria de apostar dinheiro que a chance de fazer uso de todos os recursos em todas as instâncias judiciais está restrito, por carência de renda para pagar a advogados, a cerca de 2% da população brasileira? Pago 10 x 1.

De braços unidos marcham as piores oligarquias e a “esquerda” nessa questão. Contra o usual em praticamente todo o mundo democrático (as exceções compensam com grande celeridade nos processos). Vergonha.

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Sérgio Besserman Vianna é presidente do Instituto Jardim Botânico do Rio de Janeiro

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