domingo, 6 de maio de 2018

Celso Ming: Mais cabeça, menos cauda

- O Estado de S.Paulo

No vocabulário do brasileiro, a palavra empreendedorismo está cada vez mais presente e vem sendo mais facilmente pronunciada até por gente simples. Todo mundo quer ser chefe de si mesmo e, mais do que isso, subir na vida e prosperar.

Em 2017, em meio às dificuldades encontradas pela economia, o número de empresas no Brasil aumentou 13,6% em comparação às existentes em 2016, de acordo com o bureau de crédito Boa Vista. O crescimento foi sustentado pelos pequenos empresários, os Microempreendedores Individuais (MEIs), que cresceram 19,1%, e as microempresas, que avançaram 6,8%. A criação de empresas de maior porte sofreu retração de 12,8%.

Esses dados guardam proporção com estatísticas mais recentes, como os da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua do primeiro trimestre deste ano. Comparado ao primeiro trimestre de 2017, o trabalho por conta própria cresceu 3,2% e a categoria de empregador, aquele em que pelo menos um funcionário é contratado para desempenhar atividade produtiva, cresceu 5,7%. Além desses números do IBGE, um estudo recente do Banco Santander concluiu que pelo menos 50% dos postos de trabalho criados ou a serem criados em 2018 corresponderão a atividades “por conta própria” ou serão microempresas.

Assim, o empreendedorismo brasileiro encontra no mercado de trabalho deteriorado impulso para crescer. Mas, ao contrário do que acontece com o sapo – que só pula por precisão e não por boniteza, como diz Guimarães Rosa –, não é apenas a necessidade que cria esse empreendedor.

Em 2016, estudo do Sebrae apontou que, entre os anos de 2009 e 2015, período em que a economia brasileira não apresentava tanta vacilação como agora, a média de registros de MEIs por hora era superior a cem.

Como já apontou esta Coluna em outras oportunidades, o trabalhador já não busca um novo emprego, como antes. Talvez pelo maior acesso aos aplicativos e à internet, ele passou a dar mais valor ao esforço e às realizações pessoais do que a procurar melhor colocação no mercado de trabalho.

É por essa brecha da nova relação do brasileiro com atividades remuneradas que as igrejas evangélicas, em especial as neopentecostais, têm avançado. Hoje, um terço dos brasileiros se declara protestante e, conforme levantamento do IBGE, 14 mil novas igrejas neopentecostais surgem a cada ano.

Há mais novidades. Como observa o sociólogo André Ricardo de Souza, coordenador do Núcleo de Estudos de Religião da Universidade Federal de São Carlos, não apenas se expande o número das igrejas neopentecostais, como, também, todo o movimento evangélico brasileiro vem passando por uma espécie de “neopentecostalização”. Ou seja, até mesmo igrejas evangélicas tradicionais têm se apropriado do discurso da “prosperidade aqui e agora”, tal como divulgado pelas igrejas neopentecostais.

Autora da tese de doutorado, pela PUC-SP, que trata da relação entre neopentecostalismo e empreendedorismo, a professora Silvia Mara Bertani observou que a mensagem de cunho mais liberal e individualista, que prega a busca da prosperidade pessoal, tal como propagada pelas igrejas neopentecostais, começa a atrair uma nova classe média empreendedora. Ou seja, esse rebanho não é mais formado apenas por crentes de classe mais baixa. Mais e mais vai sendo integrado por indivíduos das classes médias. Além disso, caracteriza importante mudança do ethos do trabalho, com impacto sobre toda a sociedade, no sentido de que o trabalho tem de ser encarado não apenas como meio de sustento, mas, também, como instrumento de ascensão econômica e social.

É cada vez mais frequente a realização de cultos, especialmente voltados a pequenos empresários, que se dedicam a celebrar o sucesso nos negócios. Até mesmo na Igreja Católica se fortalecem grupos mais alinhados com a chamada teologia da prosperidade do que com a mais antiga teologia da libertação.

Essa guinada em direção ao espírito empreendedor muda, também, a relação dos indivíduos com o Estado. Como observa a pesquisadora Silvia Bertani, o Estado é visto como agente criador de oportunidades para empresários e não mais como simples instrumento destinado a atender aos anseios da população mediante a execução de políticas públicas: “As demandas são por consumo e renda, bem como por uma legislação que estimule a atividade empresarial para que, individualmente, produzam mais e prosperem”.

Enfim, seja lá o que isso signifique, fatia importante dos brasileiros cansou de ser cauda e quer, finalmente, ser cabeça. Não importa, no momento, que ainda seja de peixe miúdo.

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