quarta-feira, 30 de maio de 2018

Discurso de Roberto Freire nos noventa e cinco anos de Armênio Guedes

Senhor Presidente.
Senhoras e Senhores Deputados.

De uns tempos para cá, o advogado e jornalista Armênio Guedes vem tendo evidência pública, a começar pela bela entrevista por ele concedida à repórter Natália Viana para o suplemento dominical “Ilustrissima”, do jornal Folha de S. Paulo (edição de 19 de dezembro de 2010). Evidência pública – destaco eu –, porquanto, Armênio é um daqueles homens imprescindíveis, como dizia o poeta alemão Bertolt Brecht, um daqueles intelectuais brasileiros que trabalharam e publicaram longamente na imprensa partidária – refiro-me em especial à imprensa do PCB, do velho Partidão –, ajudando a consolidar a longa tradição de esquerda referenciada pelas questões da democracia. Não foi outro o sentido da participação dessa mente privilegiada em iniciativas notáveis, como as revistas Estudos sociais e Novos rumos, antes de 1964, da revista Presença, e o próprio jornal Voz da Unidade, já nos anos 1980.

Armênio sempre se viu como militante a serviço de uma causa maior, o socialismo e a democracia em nosso país. Ultimamente, mereceu dois livros: o primeiro, emblematicamente chamado de O marxismo político de Armênio Guedes (Fundação Astrojildo Pereira, 2012), mostra seu pensamento político e nos permite ler seus textos escritos a partir do final dos anos 1950. De fato, ele é figura essencial na atualização do pensamento político do PCB, desde a “Declaração de Março de 1958” até os anos da transição democrática entre nós, iniciada sem governo de transição, como ele próprio nos ensinou, ao valorizar a forma peculiar da transição para a democracia que se intensificou a partir da anistia de 1979.

No próximo dia 17, segunda-feira que vem, será lançado em São Paulo, pela Editora Barcarolla, o não menos expressivo livro escrito pelo jornalista Sandro Vaia, chamado Armênio Guedes – sereno guerreiro da liberdade. Este lançamento está diretamente vinculado aos festejos dos seus 95 anos de existência, a maior parte dos quais traçou a trajetória de um militante comunista que sempre soube se renovar, especialmente no tempo do exílio e na conjuntura de crise crescente do regime soviético, superando com seu marxismo gramsciano as antigas limitações doutrinárias de que tantos não puderam ou quiseram escapar.

Neste sentido, e estas duas importantes obras estão aí para confirmar, ele pode ser considerado um dos pais fundadores da moderna esquerda democrática brasileira, ainda em construção, por oposição à constante tentação autoritária que parece assolar a parte mais estreita e sectária de grupos organizados e de pessoas que desejam um país efetivamente democrático e de oportunidades iguais para todos.

Armênio Guedes nasceu no interior da Bahia, no município de Mucugê, na Chapada Diamantina, no dia 30 de maio de 1918. Ele é originário de uma família de 11 filhos (quatro homens e sete mulheres), dois dos quais quadros qualificados do PCB, como a advogada Júlia Guedes, companheira de Rui Facó, e que morreu de câncer, em Moscou, nos anos 1950, e o dentista Célio Guedes, um dos “desaparecidos” políticos da sanha repressora policial-militar do início dos anos 1970, todos procriações do casal Júlio Augusto de Castro Guedes e de Adorzinda Dulfina dos Santos Guedes, a “Sinhá”. Seu pai foi garimpeiro de diamante e depois lapidador, ganhando dinheiro suficiente para educar todos os filhos, inclusive na Universidade. A família Guedes foi criada nesse ambiente de trabalho árduo, onde o patriarca se movia pela determinação de dar educação formal aos filhos. Não queria acumular riqueza, ter propriedades, todo o dinheiro foi usado para educar os filhos. Ele achava que cada um deles educado, teria como se mover por si só e enfrentar a vida de cabeça erguida.

Armênio, desde jovem, apesar de um gosto especial por História, passou também a se dedicar à Matemática porque queria fazer Engenharia. Mas quando terminou o ginásio já estava inteiramente envolvido em política, ganho que fora para a luta pelas liberdades e por justiça social. Então, voltou-se para os estudos de Direito em cuja Faculdade estava concentrado o maior grupo de comunistas de Salvador e, portanto, da Bahia. Após o movimento revolucionário de 1935, a chamada Intentona Comunista, com as perseguições e a repressão que se seguiram, Armênio – como tantos outros militantes e intelectuais ligados ao PCB – teve que deixar a Boa Terra e foi morar no Rio de Janeiro, então capital da República, onde se integrou à atividade partidária, sobretudo à vinculada aos jornais e revistas, mantidas pelo seu partido.

O certo é que ele está assim, nas últimas sete décadas, no centro da história do Partido Comunista que nasceu em 1922 – ano significativo da modernidade em nosso país. De acordo com outra figura histórica do PCB e ex-deputado desta Casa, Marco Antônio Tavares Coelho, e que teve seu mandato cassado por um dos primeiros atos institucionais dos ditadores de plantão de 1964, Armênio teria sido o quadro intelectual de maior influência no partido, contribuindo decisivamente – com sua argúcia política e serenidade pessoal – para definir os rumos da resistência pacífica ao regime autoritário que vigiu até 1985, evitando a tentação da luta armada e sinalizando com a perspectiva da convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte. E, mesmo quando vigorava o “marxismo-leninismo” como doutrina oficial dos PCs, se o PCB teve uma atuação de grande responsabilidade – como atestado, entre outros, pelo sociólogo isebiano Hélio Jaguaribe –, isso se deveu à ação de grandes talentos políticos, tais como, para dar alguns exemplos, Marco Antônio Coelho, Giocondo Dias,Salomão Malina, Luiz Inácio Maranhão Filho e, naturalmente, Armênio Guedes.

Após o golpe de 1964 e, mais particularmente, nos anos de chumbo, ele – para quem o conheceu, e muitos estão hoje no Congresso Nacional – foi o ponto de referência seguro, por sua firme defesa da estratégia de resistência ativa, mas pacífica, ao regime autoritário, sobretudo nos piores momentos deste regime. Armênio esteve sempre muito atento em caracterizar as diferentes conjunturas e em caracterizar a evolução reacionária da ditadura de 1964 após o AI-5. Chegou a se referir a um “processo de fascistização”, quando o Estado brasileiro passou a acirrar seus traços de Estado policial, lançando mão de intimidações cruéis, torturas e desaparecimentos na sua política repressiva. No entanto, para ele, o enrijecimento do regime não iria seguir sem obstáculos e resistências. Era possível paralisar e derrotar a ditadura por meio da política de frente democrática – dizia ele em pleno 1970, no começo do Governo Médici. Uma visão, portanto, efetivamente serena e racional, que, forjada no calor da hora, muito iria ajudar na superação do impasse político que então sufocava o país.

Por tudo isso, a ação e a influência de Armênio, embora desenvolvidas num partido específico, vão além das fronteiras deste mesmo partido. Ele teve e tem presença nacional em outros partidos de orientação democrática, como o MDB e o PMDB históricos, e em vários afluentes da grande corrente do socialismo e da social-democracia brasileira.

Os noventa e cinco anos de Armênio, o lançamento do livro de Sandro Vaia e os múltiplos encontros a que estes eventos darão ensejo atestam a vitalidade, ainda hoje, de um campo político que o PPS/MD quer manter vivo e permanentemente aprofundar, por sua importância passada e projeção futura para a política e a cultura no nosso país. Um campo formado, entre muitos outros, por Astrojildo Pereira (ele mesmo um dos mestres de Armênio), Graciliano Ramos, Jorge Amado, Mário Lago, Caio Prado Jr., Alberto Passos Guimarães, Nelson Werneck Sodré, Oduvaldo Viana Filho, Ferreira Gullar e Luiz Werneck Vianna.

Neste universo, de larga ressonância na vida pública do Brasil, Armênio Guedes é uma estrela de primeira grandeza. Chegar a este universo com as credenciais de lealdade democrática, solidariedade com os subalternos e visão dos mais altos fins da República, como a liberdade para todos e a igualdade entre todos, é uma conquista para poucos. Ou, voltando a Brecht, só para aqueles que são verdadeiramente imprescindíveis.

Como o atual presidente de honra da Fundação Astrojildo Pereira, instituída, há mais de dez anos, pelo Partido Popular Socialista – dono de um pensamento dialético e inovador – continua a ser uma das maiores referências da esquerda democrática do nosso país, não poderíamos deixar de render nossa mais sincera e fraterna homenagem, nos seus 95 anos de uma difícil mas emocionante existência.

Nossos parabéns a Armênio Guedes, um indormido combatente da democracia e do pensamento livre entre nós, exemplo efetivo de um contemporâneo do futuro!

Brasília, 11 de junho de 2013

Deputado Roberto Freire

Nenhum comentário:

Postar um comentário