segunda-feira, 7 de maio de 2018

Fernando Limongi: A Síria não é aqui

- Valor Econômico

Vive-se a apologia da intransigência e da intolerância

Geraldo Alckmin continua a patinar. Sua candidatura não entusiasma. Na semana passada, a "Folha de São Paulo" entrevistou Frederico D' Ávila, apresentando-o como o 'mais graúdo aliado' do tucano a desertar suas fileiras e passar à órbita de Jair Bolsonaro. Tempos atrás, o jornal havia aberto suas páginas para destacar que alguns dos 'pais' do Plano Real estavam deixando o partido. Entre esses, o destaque foi para Gustavo Franco, que aderiu ao Partido Novo, do qual se tornou uma espécie de ideólogo e relações públicas.

Frederico D´Ávila foi apresentado como ruralista e diretor da Sociedade Rural Brasileira. Sua deserção, portanto, foi tratada como representativa da adesão do agronegócio a Bolsonaro. Assim, para além das dificuldades com os economistas de longa associação com o mercado financeiro, o tucano teria agora encontrado oposição entre os produtores rurais.

Razões mais prosaicas explicam os holofotes dedicados à opção política de D'Ávila. Seu irmão mais velho, Felipe, criador do Centro de Liderança Política, contou com apoio de Alckmin para lançar sua candidatura ao governo estadual pelo PSDB. Apesar de ser impiedosamente esmagado nas prévias partidárias pelo ex-prefeito João Dória, o mais velho dos D'Ávilas não deixou o ninho tucano e participa da equipe que elabora o programa de governo de Geraldo Alckmin.

Gustavo Franco e Frederico D'Ávila ilustram uma das muitas novidades dessa eleição presidencial. A direita ensaia abandonar o PSDB e o faz por um misto de razões ideológicas e estratégicas.

Na realidade, as questões ideológicas, pelo menos as mais caras ao ideário da direita, não parecem ser o maior problema do PSDB e de seu candidato. Ao contrário, no quesito primado do mercado sobre o Estado, é o candidato do PSL que não se sai muito bem. Difícil não levar em conta seus primeiros passos na carreira política como um defensor radical dos privilégios salariais e previdenciários da corporação militar. A tentativa de apagar suas convicções 'terceirizando' seu programa econômico, deixando-o a cargo de Paulo Guedes, uma espécie de decano da militância empresarial a favor do estado mínimo, não é lá muito convincente.


Não há qualquer garantia de que esse casamento de conveniência sobreviva às eleições e muito menos aos inevitáveis percalços de qualquer governo. Já Alckmin, se analisado desse ângulo, reúne credenciais de sobra para oferecer as garantias exigidas pelo mercado. Seu partido, não se pode esquecer, foi responsável pelo mais consequente plano de privatização levado a cabo no Brasil. Além disso, o candidato está cercado por economistas tão ou mais competentes que Paulo Guedes e igualmente alinhados com o mercado.

Nos demais quesitos caros a Bolsonaro e outros candidatos da direita mais ideológica, como defesa dos valores da família e controle da criminalidade, não há razões para desconfiar dos compromissos de Geraldo Alckmin. Dentre os tucanos, o ex-governador de São Paulo é o mais afinado com a pauta da direita, ainda que descarte alguns de seus exageros recentes, como do direito dos cidadãos portarem armas, uma excrecência que Jair Bolsonaro, João Amoêdo e Flávio Rocha acham por bem defender.

Na realidade, nas justificativas apresentadas por Frederico D'Ávila para preferir Bolsonaro a Alckmin, não figuram razões ideológicas ou programáticas. A questão de fundo é de método.

D´Ávila recorreu a umas tantas comparações para explicar sua adesão ao PSL. Em uma delas, afirmou que Alckmin seria um bom comandante de avião de carreira, daqueles capazes de cruzar o Atlântico quando tudo está ok. Mas, ressalvou o entrevistado, estaríamos 'voando sobre a Síria' e, nesse caso, a situação requer um piloto de avião de caça, uma missão talhada para o militar aposentado. O recurso à comparação bélica não é gratuito. A imagem capta bem as razões que alimentam as restrições à Alckmin e ao PSDB entre setores empresariais e sensíveis às ideias da nova direita. Haveria um desajuste entre o candidato e a realidade, uma insensibilidade para o momento vivido pelo país. No mundo em que Frederico D'Ávila habita, ou para ser mais exato, no mundo em que o fazendeiro acredita que está vivendo, o país atravessa uma guerra civil ou algo próximo disso. O fazendeiro se enxerga na Síria e no meio de um combate. Mais do que isso, em lugar de acomodar ou procurar firmar uma trégua, acredita que é hora de avançar, reforçar o ataque. Nada de compromisso e acomodação. D'Ávila quer que a cavalaria venha completar o serviço.

Em outras palavras, Geraldo Alckmin, porque irrealista, porque incapaz de ver o cenário real --a Síria sobre a qual estaríamos sobrevoando- seria excessivamente brando, cordato, para não dizer civilizado. Em outra das suas comparações, o empresário rural afirmou: "Estamos com o país na UTI e querem tratar o paciente com homeopatia" A alfinetada no médico Alckmin não poderia ser mais direta.

O que se rejeita é a terapia, o método político. O PSDB não seria suficientemente radical e por isso deveria ser deixado para trás. O fazendeiro acha que o momento pede a truculência dos que habitam as terras dos comerciais de cigarro, dos que habitualmente recorrem à violência para resolver conflitos. Contemporizar é coisa de timoratos.

A fala de Frederico D'Ávila contém um sentido de urgência que se apossou do discurso politico brasileiro atual, encontrado tanto na direita quanto na esquerda, uma verdadeira apologia de uma intransigência fundida com doses de intolerância. Tudo se passa como se a crise atual fosse o resultado da moderação, da disposição para negociar e conciliar. A beligerância radical passou a ser exaltada como virtude.

Pacientes podem ir parar na UTI por várias razões, envolver-se em briga é uma delas. Com certeza, se receber novas bordoadas como tratamento, o país não recobrará a razão. Assim se vive na Síria: entre escombros.
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Fernando Limongi é professor do DCP/USP e pesquisador do Cebrap.

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