sexta-feira, 25 de maio de 2018

José de Souza Martins: Os miseráveis

- Eu &Fim de Semana | Valor Econômico

Quem são os miseráveis das estatísticas oficiais que nos dizem o que é o Brasil que não gostaríamos que o Brasil fosse? Como é possível que a herança de um regime político que proclamou ter acabado com a pobreza no país seja justamente a de mais de 13 milhões de miseráveis, com aumento de 1,5 milhão em pouco tempo? A de 12,3 milhões desempregados? A de uma política social cuja grande marca é a de um auxílio à sobrevivência a mais de um terço da população de 11 Estados do Norte e Nordeste por meio do Bolsa Família e 21%, um quinto, da população brasileira dele dependente? Sem contar mais de 5 milhões de brasileiros à procura de emprego há mais de um ano? A daqueles com maior incidência de desalentados, os que desistem de procurar emprego, nas regiões Nordeste, Sudeste, Norte? A de um país com mais de 27 milhões de trabalhadores subutilizados?

Esses dados aparentemente desencontrados convergem na indicação de que se trata não só de problemas não resolvidos, mas também de problemas de solução pela metade e em boa parte sem perspectiva de solução. Esses números não nos falam apenas da herança numérica líquida de um desastre social e político, de que não tomamos consciência no devido tempo porque acobertada por induções mágicas de leitura de tabelas.

Neles está aquela parte de solução lenta e não integrativa, a dos milhões que há mais de ano procuram trabalho. Ou aqueles subutilizados que refletem a substituição de trabalho humano por tecnologia. Um cenário de descarte de seres humanos e de falta de criatividade política para estabelecer um nível de emprego capaz de assegurar à sociedade inteira a segurança de que cada brasileiro está social e economicamente integrado. A não integração não é normal nem é decente.

O que resta desse cenário é que pelo menos um quinto dos brasileiros vive hoje à margem do sistema econômico e que estar à procura de emprego já não é temporário, é uma ameaça a muitos e um traço da identidade de milhões de brasileiros. São os situados no limiar da integração estável, os sem motivos para subscrever o pacto social e político que garanta a ordem no país.

Discutir segurança, educação, identificação com o destino comum, respeito aos direitos humanos e até mesmo o reconhecimento da humanidade de todos, sem levar em conta a exclusão social de tão extensa parcela de brasileiros, é ingênua concepção dos problemas sociais e dos riscos políticos a que o Brasil está sujeito.

O Brasil criou um sistema capitalista peculiar em que a reprodução do capital se tornou dependente de técnicas de acumulação que vão da corrupção, à especulação, às formas rentistas de extração de excedentes econômicos dos mais frágeis e desvalidos. Favela não é produto de pobreza, é produto do enorme e descabido custo da renda fundiária urbana, nos preços especulativos dos terrenos, causa da invasão de terras desocupadas. Nas grandes cidades brasileiras é possível ganhar fortunas sem o investimento produtivo de um único centavo, apenas comprando terras por pouco para vendê-las por muito.

A superação capitalista das insuficiências econômicas e das injustiças sociais depende de um retorno ao capitalismo. O que depende de democracia, de equilibrado senso de justiça e da gestão da riqueza em nome do bem comum, e não em nome de concepções egoístas de ganho e propriedade.

O sociólogo alemão Max Weber mostrou que o capitalista verdadeiro é o empresário que atende a vocação impessoal de fazer o sistema funcionar. O próprio Karl Marx, autor da primeira teoria cientificamente fundamentada do que é a sociedade capitalista, já havia apontado que o capitalista é um funcionário do capital, e não um senhor feudal da riqueza injustamente acumulada com base em privilégios de mando e dominação. Lucro é outra coisa.

A abundância do noticiário sobre a corrupção no Brasil é um indicador poderoso de que o capitalismo entre nós sucumbiu à incompetência para prever os ganhos extraordinários da inovação, que é um bem comum, e para gerir os desdobramentos sociais desses ganhos. Sobretudo para compreender em tempo os problemas sociais decorrentes do mau funcionamento do sistema econômico.

Na maioria dos países latino-americanos, e disso o Brasil é "modelo", o sistema econômico vem se tornando o do descarte social de seres humanos, caso da Venezuela. Nessa brutal criação da humanidade mínima, direita e esquerda são reciprocamente cúmplices. O pseudocapitalismo residual latino-americano e o pseudossocialismo regional, resto de concepções dos fracassos do comunismo antimarxiano, são face e contraface das mesmas insuficiências de compreensão do processo histórico e das limitadas possibilidades da região.
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José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Membro da Academia Paulista de Letras e autor de “Moleque de Fábrica” (Ateliê Editorial), dentre outros.

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