sexta-feira, 4 de maio de 2018

José de Souza Martins: Previdência de criança

- Eu & Fim de Semana / Valor Econômico

Em decisão válida para todo o país, o Tribunal Federal de Recursos da 4ª Região (Porto Alegre) determinou que se inclua no cálculo da aposentadoria o trabalho infantil, caso daqueles que já trabalhavam quando chegaram à idade mínima prevista em lei para seu ingresso na força de trabalho. É aquele período em que os idosos de hoje trabalharam em vez de brincar e de estudar, forçados a ser adultos antes do tempo. Não reconhecer o trabalho como trabalho só porque o trabalhador é criança constitui violência e usurpação de direitos.

Muitos temem que esse justo reconhecimento vá danificar a engenharia econômica atual, que arquiteta o encolhimento dos direitos dos que tendo trabalhado a vida inteira tentam agora ter em velhice digna o que lhes foi tirado sob forma de infância indigna e imprópria. São aqueles que, ainda crianças, não pagaram a contribuição previdenciária porque o próprio sistema econômico os privou de meios para tanto.

A história do trabalho infantil, no Brasil, porém, é uma história contínua de injustiças e de lesão dos direitos dos imaturos. Que, no fim das contas, oneram o conjunto da economia. Reformas como a da Previdência, enquanto reforma atuarial e não como reforma social, empurram para a vítima os custos de problemas que não foram criados por ela.

Até hoje não se avaliou o quanto o trabalho precoce é entre nós causa de doenças precoces e de mortes precoces que, no fim das contas, oneram a Previdência Social. Os que culpam o trabalhador pelos desarranjos nas contas previdenciárias omitem-se em relação à realidade social do trabalho e em relação ao fato de que alguém ganhou com isso. Não são as vítimas do trabalho antes do tempo as responsáveis pelo déficit da Previdência. A responsabilidade por ele é do déficit de políticas sociais responsáveis.

Convém visitar as estatísticas oficiais. A população que trabalha ou "pode" trabalhar entra nas estatísticas do trabalho a partir dos 14 anos de idade. E a que já está no trabalho aos 10 anos de idade e até antes? Os censos são parte da trama de omissões na raiz desse imenso problema social decorrente do trabalho de crianças que mal sabem soletrar a palavra trabalho. Trabalho mutilante do corpo e do espírito. Um trabalho sem conceito. As evidências da injustiça social vão para baixo do tapete de tramas numéricas e atuariais.

Recorro a um censo de quando os velhos de hoje eram crianças. No censo de 1950, quando as estatísticas do trabalho pressupunham que os menores de idade começavam a trabalhar ilegalmente já aos 10 anos de idade, mais de 6 milhões de crianças de 10 a 14 anos de idade já trabalhavam. Um grupo que ficaria fora de estatísticas de agora. Mais de 400 mil eram assalariadas em diferentes setores da economia. Quase 65 mil especificamente na indústria de transformação.

Milhões de crianças na história do trabalho no Brasil contribuíram para que a economia brasileira desse, em curto tempo, o grande salto histórico da agricultura escravista de exportação para a economia salarial da indústria moderna. Sou uma delas e de uma família de crianças trabalhadoras que fez todo esse percurso. Falo do que conheço e bem.

Aos 11 anos de idade, em 1950, eu já era operário de uma pequena fábrica clandestina e insalubre, de fundo de quintal. Ganhava 100 cruzeiros por mês, por semana de 48 horas. O salário mínimo era de pouco menos de 500 cruzeiros. A lei dizia que o salário-mínimo do menor de idade deveria ser de metade do mínimo do adulto. Portanto, eu ganhava apenas 40% do que tinha direito por lei.

Aliás, por lei, eu nem poderia trabalhar, pois ela estabelecia que a criança só começaria a trabalhar aos 14 anos de idade. Duplamente explorado: como trabalhador, no salário inferior ao que tinha direito, e como pessoa, porque a economia brasileira me forçara na condição de adulto antes do tempo. Quando consegui emprego numa fábrica decente, que me registrou e, em relação a mim, respeitou os direitos que a lei da época dizia que eu tinha, já carregava no corpo sinais físicos do trabalho impróprio para alguém de minha idade.

Num país em que baldes de lágrimas de crocodilo são derramados para lamentar a escravidão do negro, mas não a escravidão do índio, aliás sobrevivente no caipira e no sertanejo, nem a dos milhares de imigrantes brancos miseráveis trazidos da Europa, já antes da abolição da escravatura, para substituir escravos nos cafezais, em trabalho similar ao do escravo, é grande hipocrisia não derramar uma lágrima sequer por milhares de crianças, de diferentes raças e cores de pele, que consumiram sua infância e sua adolescência nas leiras dos cafezais, dos canaviais e na linha de produção da indústria nascente.
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José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de “Moleque de Fábrica” (Ateliê Editorial).

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