Sérgio Augusto | O Estado de S.Paulo
Assim como o século 20 só começou em 1914, com a 1.ª Guerra Mundial, o ano de 1968 só teria começado com as agitações de maio, que na verdade tiveram início em fevereiro (na França) e em março (no Brasil). Em Paris, com uma crise na Cinemateca Francesa; no Rio, com o assassinato de um estudante. Se valem marcos positivos – e por que não valeriam? – tiro dois da cartola: a Ofensiva do Tet, no penúltimo dia de janeiro, quando os vietcongues começaram a “virar” a guerra no Vietnã, e um manifesto do jovem (22 anos) crítico paulista Rogério Sganzerla, Cinema Fora da Lei, escrito enquanto rodava O Bandido da Luz Vermelha.
Com o manifesto e seu filme, só lançado comercialmente em São Paulo no fim do ano, o cinema brasileiro acendeu a primeira fogueira da conflagração cultural da temporada, marcada por atos, fatos, feitos e desfeitos de consequências duradouras. Da crescente politização dos filmes à eclosão do Tropicalismo; da primeira montagem de O Rei da Vela à invasão, por 90 trogloditas do CCC (Comando de Caça aos Comunistas), de outro espetáculo de José Celso Martinez Corrêa, Roda Viva, com músicas de Chico Buarque; do colossal show cívico da Passeata dos 100 mil à provocativa bandeira serigrafada (“Seja marginal, seja herói”) de Hélio Oiticica; das primeiras e arrojadas feiras de arte no Museu de Arte Moderna do Rio à criação, pelo governo, do Conselho Superior de Censura, que Millôr Fernandes recepcionou com esta tirada: “Se é de censura, não pode ser superior”.
Já na abertura de seu manifesto – um contraponto ao da “estética da fome” de Glauber Rocha – Sganzerla anunciava: “Meu filme é um faroeste sobre o 3.º Mundo”, uma fusão e mixagem de vários gêneros, um filme-soma. Misto de bangue-bangue urbano com toques de documentário e comédia musical, do noir de Orson Welles e do anarquismo de Godard, O Bandido da Luz Vermelha foi, em outra clave, o Terra em Transe de 68. Acabou justamente premiado no Festival de Brasília, concorrendo com Nelson Pereira dos Santos (Fome de Amor) e uma das melhores e mais politizadas safras do cinema brasileiro moderno.
Brasília 68 foi especialmente agitado e, de certo modo, contaminado pela crise institucional protagonizada pelo deputado Márcio Moreira Alves, que despertara a ira dos militares ao sugerir que a população boicotasse os festejos da Semana da Pátria. A Comissão de Justiça da Câmara ainda se recusava a autorizar o governo a processar o deputado quando este fez uma aparição relâmpago no Hotel Nacional (QG do festival), para conversar com os amigos do cinema e da imprensa – e abafou. Horas depois, o poder verde-oliva impôs-se ao legislativo, baixou o AI-5 e fechou o Congresso.
Apesar dos feitos cinematográficos, da poderosa influência (mesmo in absentia) de Glauber e da agitadora onipresença de Zé Celso, 1968 afinal se consagrou como um ano musical por excelência e insistência. O entusiasmo juvenil pelos festivais que a TV Record promovera em 1967 ajudou a consolidar a Tropicália liderada por Caetano Veloso, Gilberto Gil e os Mutantes, um contraponto irracional, anticonvencional e antropofágico do dirigismo programático (e pretensamente brechtiano) do Centro Popular de Cultura, até então hegemônico junto às esquerdas e ao público jovem.
Não sem alguns percalços. Vaiado pela plateia estudantil que lotava o Teatro Tuca, na capital paulista, Caetano, do alto da autoridade moral que lhe dera a recente composição É Proibido Proibir, encarou sem piscar a intolerância. “Mas é isto que é a juventude que diz querer tomar o poder?”, berrou. “Vocês não estão entendendo nada. Nada. Se vocês forem em política o que são em estética...”
Essa guerra cultural entre irmãos – todos vítimas das mesmas forças retrógradas estéticas e ideológicas que mandavam no País – culminaria com um duelo musical, não entre o samba tradicional e as guitarras elétricas tropicalistas, mas entre uma canção lírica e outra de protesto. A brasilidade pura não estava em jogo na noite de 29 de setembro, final do Festival Internacional da Canção, no ginásio do Maracanãzinho, no Rio. Uma das finalistas, Sabiá, de Tom Jobim e Chico Buarque, era a Canção do Exílio de Gonçalves Dias revisitada. A concorrente, Para Dizer que Não Falei de Flores (também conhecida como Caminhando), de Geraldo Vandré, conquistara a plateia, que a tomou por um hino de protesto contra a ditadura.
Os jurados do festival afinal optaram pelo protesto sutil de Sabiá, escolha recebida com a mais estrepitosa vaia que meus ouvidos já ouviram – e certamente também os de Tom e Chico, que saíram constrangidos. Torci por Sabiá, que o tempo me convenceu ser a mais bela das canções brasileiras. Caminhando acabou proibida pela Censura e Vandré, perseguido pelos militares.
O aziago 1968 tinha tudo para terminar mal, como de fato terminou. Enquanto o Festival da Canção descia a cortina, um enfarte tirava de nosso convívio o mais estimado gozador da imprensa e da TV, Sérgio Porto, vulgo Stanislaw Ponte Preta, o Lalau das “certinhas” e do Febeapá (Festival de Besteiras que Assola o País), aliviando um pouco a barra dos poderosos do dia, vítimas diárias de seu sarcasmo. Em menos de duas semanas, outra perda irreparável para o humor e a cultura: Manuel Bandeira, nosso poeta mais alegre, partia de vez para Pasárgada. 1969 não lhe faria a menor falta.
Gostei da coluna. Mas, peço licença para acrescentar o XXX Congresso da UNE, em Ibiúna,SP, com a sua queda em 12.10.68 e a prisão de cerca de 1.000 estudantes, aos acontecimentos de 1968
ResponderExcluirLi há pouco tempo o livro de Zuenir Ventura sobre o ano que não terminou...
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