terça-feira, 12 de junho de 2018

Ana Carla Abrão: Sal da terra

- O Estado de S.Paulo

Não há como sair da crise fiscal sem reformar essa estrutura inchada e disfuncional

Em 13 de junho de 1654, em São Luís do Maranhão, Padre Antonio Vieira, pregou aos peixes no seu famoso Sermão de Santo Antonio aos Peixes. Pregava aos peixes porque os homens não lhe ouviam, ressaltando numa retórica primorosa nossas virtudes e defeitos.

Na semana passada, nessa mesma São Luís, enquanto o dólar disparava, a Bolsa derretia e o mercado acordava para os riscos de elegermos um candidato populista, uma importante discussão acontecia. Representantes das Secretarias de Planejamento e Gestão dos 26 Estados brasileiros e do Distrito Federal debateram a importância de se reformular a máquina pública no Brasil e de fazer reviver a agenda de Reforma Administrativa, abandonada há mais de 20 anos.

Ali se reuniram aqueles que vivem os problemas no dia a dia, que sofrem com a falta de instrumentos de gestão e que se sentem impotentes frente à captura e descontrole que vivemos no setor público brasileiro. A cotação do dólar, a queda da Bolsa ou a inclinação da curva de juros passaram ao largo das discussões, não por ignorância em relação aos impactos de uma economia frágil no crescimento e na receita, mas pela clareza de que nossos problemas se assentam em questões estruturais. Eles bem sabem que chegamos ao limite.

Gastamos em 2016 o equivalente a 39% do PIB com o custeio da máquina. Patamar comparável ao que gastam França, Inglaterra ou Canadá. Por outro lado, detemos as piores colocações nos rankings globais de qualidade dos serviços públicos. Saúde, educação, segurança pública e sistema judiciário não superam os 45% de satisfação, nos colocando na lanterna dentre os países pesquisados pela OCDE.

Vivemos assim uma situação paradoxal – e insustentável. Gastamos muito com a máquina, a qualidade dos serviços é péssima, os entes federados estão em colapso, desrespeitamos a Lei de Responsabilidade Fiscal e a grande maioria dos servidores públicos está insatisfeita. Há, portanto, algo muito errado com esse modelo.

As motivações para uma completa revisão do modelo são claras: serviço público de qualidade é um imperativo social em um país onde metade da população depende do Estado para ter acesso a educação, saúde, segurança e a uma rede de proteção social. Qualidade do serviço público é ferramenta de combate à desigualdade e à pobreza. Mas não há serviço, muito menos o público, que prescinda do investimento em pessoas. Para isso, há que se resgatar os conceitos de gestão de pessoas no setor público, com mecanismos que alinhem incentivos e garantam a provisão de serviços melhores.

Além disso, não há como falar em aumento de produtividade da economia brasileira desconsiderando o setor público. Num país em que mais da metade da economia está nas mãos do setor público, ou se investe em aumentar a produtividade do setor público ou teremos nele uma âncora para o aumento geral da produtividade no Brasil.

Finalmente, o colapso fiscal nos coloca ainda como motivação adicional à urgência de se reduzir ineficiência e gastos com a máquina, racionalizando leis e processos que criaram um monstro que mais pesa do que resolve, que menos serve e muito se serve. Não há caminho para fora da crise fiscal sem uma reforma profunda dessa estrutura inchada e disfuncional.

Tenho me debruçado sobre o assunto e rodado o Brasil discutindo o tema. A boa notícia é que não precisa ser assim, há muito o que fazer – e localmente , sem dependência maior de leis federais. Uma completa revisão de leis locais e processos internos coloca nas mãos de governadores, prefeitos e do Legislativo local a possibilidade e a responsabilidade de reformar a máquina pública em favor do interesse público e do cidadão. Para isso, há que se ter legitimidade, liderança e enfrentar grandes corporações. Nada fácil, mas nada impossível.

Volto a São Luís e a Padre Antonio Vieira no seu apelo à razão dos homens, não dos peixes: é chegada a hora de pararmos de nos comermos uns aos outros – em particular os grandes aos pequenos. Pois não mais bastam 180 milhões de pequenos para alimentar os poucos grandes que tomaram de assalto o nosso País.
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Economista

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