sábado, 9 de junho de 2018

*Bolívar Lamounier: Hora de cair na real

- O Estado de S.Paulo

Permaneceremos um país pobre, desigual e com nível de conflito social impensável

O solavanco provocado pelo locaute/greve dos caminhoneiros força-nos a fazer algo que há anos temos tentado evitar: cair na real.

A “real”, o que é, exatamente? Dito com a simplicidade e a circunspecção que a hora exige, é o reconhecimento de que o Brasil está perdendo o bonde da História. Na toada em que temos levado a vida, é óbvio que não iremos a lugar nenhum. Permaneceremos por muito tempo como um país pobre, extremamente desigual e com o conflito social atingindo níveis impensáveis.

Não me canso de repetir que, a continuarem as medíocres taxas de crescimento do PIB que mal e parcamente temos atingido, levaremos uma geração inteira para dobrar nossa renda média por habitante, que hoje se situa em torno de US$ 11 mil anuais. E não se requer um grande esforço de imaginação para perceber que quando atingirmos essa meta (meta?!) nossa situação social será ainda muito pior que a dos países europeus que se encontram atualmente um pouco acima ou um pouco abaixo desse nível. Nossa distribuição de renda será ainda muito pior que a deles. Nosso sistema educacional, idem. Nosso índice de criminalidade violenta (número de homicídios por 100 mil habitantes), muitíssimo pior. Nossas condições de saneamento, sabe Deus. Rezemos para que pelo menos as metrópoles mais bem aquinhoadas, como São Paulo, estejam livres do pernilongo e do mosquito Aedes aegypti. E dos escorpiões, cujo número parece ter aumentando 700% nos meios urbanos do País.

Esse é o pano de fundo sine qua non em termos do qual precisamos nos entender. Para delinear preliminarmente o entendimento de que necessitamos, se queremos mesmo nos livrar desse futuro sombrio, penso que três pontos precisam ser considerados: a agenda de reformas estruturais, as eleições de outubro e certas mudanças para pior que vêm ocorrendo em nosso sistema político.

Primeiro, implementar uma agenda de reformas estruturais muito mais abrangentes que as atualmente em debate. Isso soa para lá de utópico, bem o sei. Como falar em reformas abrangentes se o Congresso não se dispôs a aprovar nem uma modesta reforma da Previdência? Mas as reformas virão, cedo ou tarde, pela força das coisas, a menos que tenhamos realmente, como nação, uma irresistível propensão ao suicídio. Com um Estado agigantado e ineficiente, corroído até a medula pelo patrimonialismo e pela corrupção, é evidente que a economia continuará travada, e almas frágeis tremerão ante o nível dos conflitos sociais a que antes me referi.

Com todo o respeito aos senhores e senhoras pré-candidatos, temos de admitir que o elenco está bastante abaixo do enredo. Pelo lado da sensatez e da experiência, a exceção é o governador Geraldo Alckmin, mas por ora nada podemos adiantar a respeito da força de que disporia para lidar com o Congresso. Ciro Gomes (que foi governador do Ceará) e Jair Bolsonaro, cuja experiência se limita à Câmara dos Deputados, ostentam traços notavelmente retrógrados tanto na esfera pessoal – uma inequívoca tendência autoritária – como na do pensamento econômico e social, e com certeza enfrentarão (enfrentariam) dificuldades ainda maiores no relacionamento com o Congresso.

Álvaro Dias também tem uma experiência significativa, mas não dispõe de base partidária; e Marina Silva, a meu juízo, poderia neste momento prestar uma contribuição mais útil ao País no Senado do que em sua improvável postulação presidencial. Do Congresso, o que esperar senão mais do mesmo, com baixa renovação numérica e provavelmente nenhuma no tocante aos perfis políticos?

Claro está que o panorama eleitoral não é animador, mas o quadro piora bastante se levarmos em conta certas transformações para pior que se acham em curso na sociedade brasileira. Refiro-me ao embate entre dois “subsistemas”, o partidário e o das organizações corporativas. Os partidos políticos, historicamente débeis e atingidos em cheio pelas investigações de corrupção, conservam alguma capacidade de atrapalhar, mas nenhuma de contribuir positivamente para a governabilidade. No polo contrário, o corporativismo generalizado da sociedade brasileira nunca foi tão evidente – e tão forte. Não percebemos a tempo a mutação no sistema político brasileiro, cujas unidades reais são organizações voltadas exclusivamente para seus interesses mais estreitos e imediatos, defendendo-os acirradamente umas contra as outras e todas contra o governo. Salta aos olhos que o universo corporativo se enraizou e aumentou visivelmente seu poder relativamente aos partidos e às instituições políticas de modo geral. Sem esquecer que um “espírito” corporativo permeia de ponta a ponta as próprias instituições, sendo que, neste aspecto, o Judiciário aparece como um exemplo teratológico.

Para ressaltar a importância da hipótese que venho de expor a respeito do corporativismo, é imprescindível pôr em relevo dois aspectos da greve dos caminhoneiros. Primeiro, não me parece exagerado afirmar que o Brasil ficou praticamente sem governo durante nove dias. Perseguindo seus objetivos particulares, cujo mérito não tenho como discutir no espaço disponível, fato é que o movimento manteve o governo e praticamente toda a sociedade na condição de refém. Governo refém não é governo, é apenas uma aparência de governo.

Como foi isso possível? Este é meu segundo ponto: 20 ou 30 anos atrás, antes de deflagrar uma greve, mesmo os sindicatos mais poderosos tinham de passar dias e dias preparando-a, fazendo panfletagem na porta das fábricas, etc. Hoje, um movimento de grande porte pode ser organizado numa tarde. Estamos na era do celular e do WhatsApp. Com esse recurso e serviços de inteligência um tanto lerdos, o que parecia impossível passa a acontecer até com certa facilidade.
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*Sócio-diretor da Augurium Consultoria, membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências e autor do livro ‘Liberais e antiliberais’ (Companhia das Letras, 2016)

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