sexta-feira, 29 de junho de 2018

José de Souza Martins: A Copa de "seu" Carlos

- Eu &Fim de Semana | Valor Econômico

Há diversos modos de ver a Copa do Mundo de Futebol. A imensa maioria a vê de longe. Não vê o lado oculto da festa. Nesses modos de ver estão muitos e desencontrados sentimentos. E está muito de nós mesmos. Comparando algumas Copas do Mundo, como as vi nos olhos e no comportamento da torcida nas ruas do centro de São Paulo, posso vê-las na lentidão do tempo e relativizar as ilusões do agora. E até rastrear como fomos, aos poucos, nos tornando outra gente. No campeonato da vida e da civilidade já fomos bem melhores do que somos hoje.

Quando da Copa do Mundo de 1998, na França, o grupo de fotografia de que faço parte, o Phora-de-phoco, decidiu acompanhar os jogos no vale do Anhangabaú, em São Paulo. O vale estava lotado, do Viaduto do Chá até a avenida São João. E, também, na praça Ramos de Azevedo, na frente do Theatro Municipal. Veio gente dos bairros distantes e gente dos bairros ricos da cidade. Trombadões, trombadinhas, madames comemorando juntos. Até os desiguais abraçados, nos gols que iam nos levando para uma provável vitória. Moradores de rua, agindo como anfitriões, recebiam os forasteiros no que, via-se, consideravam sua casa. E era.

Em todo o mês da Copa não houve roubos nem crimes de sangue no centro da cidade, segundo um relatório da polícia. No país inteiro, aliás, houve redução na criminalidade. No país dos linchamentos, o primeiro linchamento só foi ocorrer 24 horas depois do término da Copa e da derrota do Brasil pela França.

Moradores de rua levaram seus animais de estimação, devidamente paramentados com a bandeira nacional, para participar da festa coletiva. Uma dessas moradoras vestiu sua melhor roupa. Colocou seu gato num carrinho de feira, elegantemente enrolado numa pequena bandeira nacional, e foi à praça Ramos apreciar com ele o movimento e compartilhar alegria. Apenas um gesto de raiva, o de um torcedor vindo da periferia, que, confirmada a derrota do Brasil para a França, destruiu seu pequeno rádio de pilha, pisando-o até virar bagaço.

O clima comunitário continuou em 2002, quando da Copa na Coreia e no Japão. Em 2006, a Copa foi na Alemanha, mas os torcedores já não eram a mesma humanidade. O acesso ao vale do Anhangabaú foi controlado, cercado por divisórias. Entrava-se por uma única passagem na proximidade do Theatro Municipal, controlada pela polícia. Uma fábrica de cervejas montara um palanque para seus convidados, no ponto de melhor visibilidade. A imensa esplanada, na qual alguns anos antes todos se tornaram finalmente iguais perante a lei e perante a consciência de cada um, tornava-se agora o lugar em que alguns eram mais iguais, na lúcida formulação de George Orwell, em "A Revolução dos Bichos".

Nosso grupo ingressou no espaço e começou a perambular, em busca de imagens e lugares propícios para tirar boas fotografias. Encontrei "seu" Carlos. Fui levar-lhe o retrato em tamanho grande, que dele fizera alguns meses antes. Eu fora à rua Líbero Badaró para fotografar o edifício Sampaio Moreira, o mais antigo e mais belo arranha-céu de São Paulo. Estava tomando fotos e vi que um senhor acompanhava o que eu fazia. Ele puxou conversa e disse ter notado que eu gostava de "coisas" antigas. Ele também. Era morador de rua. Lia diariamente os jornais pendurados nas bancas. Sabia detalhes sobre o edifício. Recomendou-me que convencesse o zelador a mostrar-me o belo elevador sueco, antigo, vermelho, com frisos dourados.

Viera do Triângulo Mineiro após perder o emprego de muitos anos porque passara dos 40 anos de idade. Começou a beber. Acabou perdendo também a família.

Convidei-o para almoçar comigo, assim poderíamos continuar a conversa sobre a história de São Paulo. Agradeceu-me, mas tinha outro compromisso. Almoçava num dos bons restaurantes daquela rua. Terminado o período comercial do almoço, às 13h30, o dono recebia os moradores de rua, aos quais servia o excedente dos alimentos preparados para o almoço do dia e não consumidos. Foi quando lhe pedi licença para fotografá-lo.

Naquele dia de Copa do Mundo, eu o encontrei abatido e cabisbaixo, encerrado num cercado numa das ilhas gramadas do local. A administração regional determinara o confinamento dos moradores de rua naquele espaço para "proteger" a multidão que afluísse ao cenário da festa de alguns, não mais de todos. Era um campinho de concentração. Estavam sentados no chão, à espera de que lhes devolvessem o espaço de sua miséria cotidiana. Ali, nada havia para fotografar, diferentemente de 1998.

A copa da vida terminara para "seu" Carlos. Apertou firme minha mão quando nos despedimos, sem nada dizer. Bem o contrário de meses antes, quando discorrera eloquente sobre a beleza e os monumentos de São Paulo.
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José de Souza Martins é sociólogo, membro da Academia Paulista de Letras e autor de “Uma Sociologia da Vida Cotidiana” (Contexto), dentre outros.

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