segunda-feira, 4 de junho de 2018

Luiz Sérgio Henriques: Caminhante, não há caminho

- Prefácio

Estes itinerários que Alberto Aggio sugere, com a competência habitual, levam ao coração de alguns dos mais importantes processos políticos contemporâneos, e não só do Brasil. É verdade que nas páginas iniciais somos lançados de chofre em nossas turbulentas ruas que, a partir de 2013, desmancharam a ilusão de uma idade de ouro que nos teria trazido, por inesperadas artes demiúrgicas, progresso econômico e distribuição de renda em ritmo quase linear – a pedra filosofal finalmente encontrada –, a prefigurar um domínio político que, na cabeça de seus dirigentes mais expressivos, não deveria se alterar significativamente por muitos anos à frente.

No entanto, seguindo o traçado aqui proposto reaprendemos mais uma vez que não há linearidade possível na política e na história. “Se hace camino al andar” – diz o poema famoso, e assim foi que as ruas brasileiras em 2013 e, depois, no biênio 2015 e 2016, desafiaram o quadro idílico e trouxeram desafios interpretativos que ainda agora nos atormentam. Intérpretes mais apressados não tardaram em formular hipóteses de regresso institucional e cultural, como se estivéssemos diante de uma ressurreição poderosa da “direita” após a experiência globalmente exitosa de quase quatro períodos presidenciais em linha com o “nacional-popular”, de resto presente em outros contextos latino-americanos ainda mais problemáticos do que o nosso – haja vista, para não deixar nenhuma dúvida, a tragédia venezuelana que se arrasta penosamente sob nossos olhos.

Mérito do livro, em cada uma das peças que compõem seu mosaico, é o de escapar dos dilemas mais simples e até simplórios que nos rodeiam e embaçam uma percepção mais nítida. Longe da pseudodialética que tudo reduz a uma alternância mecânica entre “direita” e “esquerda”, ele nos propõe desde o início hipóteses ousadas, como aquela que se baseia no caráter hipermoderno da turbulência de nossas ruas, em que se defrontariam, sem muitas mediações, radicais processos de individualização e demandas por uma esfera pública mais transparente e menos sujeita às relações incestuosas entre donos do poder político e econômico. Diante de massas de indivíduos ativadas pelas redes sociais, não há no livro nenhuma concepção de regresso inevitável ou de desforra de classes médias intrinsecamente moralistas contra o presumido avanço popular, mas, sim, atores e eventos em fluidez, abertos para diferentes resultados possíveis, o que uma cultura política de esquerda ainda marcada pelo espírito “heroico” e “revolucionário” – pelo menos verbalmente – tem dificuldade de metabolizar teoricamente e adotar como motivação para suas práticas.

Esta inquietação das ruas, ora provisoriamente serenada, conta uma parte significativa da história presente e só por meio dela se explica. No poema de Antonio Machado, o caminhante é insistentemente advertido de que o caminho “son tus huellas [...] y nada más”. Neste sentido, alguns dos itinerários tracejados seguem de perto nossas marcas recentes no chão – as marcas da esquerda brasileira, esta que, sintetizada no lulismo e no petismo, fixou as rotas no largo período entre 2003 e 2016, respectivamente o ano inicial do primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva e o da interrupção do segundo mandato de Dilma Rousseff. E, para nosso infortúnio, o inventário proposto por Alberto Aggio não tem nada de empolgante e menos ainda de tranquilizador: a experiência da esquerda no poder não terá contribuído para a renovação das instituições, oxigenando-as com a presença de uma nova elite dirigente, nem para a reativação da imaginação sociológica ou econômica, engessada que foi nos moldes estreitos do capitalismo de Estado.

De fato, ao longo daquelas rotas, nunca esteve em causa uma ruptura sistêmica – e, se por acaso tivesse estado, não é certo que seria desejável ou, ainda, teria o desfecho que o petismo idealmente pretendesse a ela imprimir. Revoluções “ativas” e irrupções jacobinas podem ser até fatos da vida, como afirma Luiz Werneck Vianna, mas perderam sua capacidade heurística ou, podemos acrescentar, sua função de instrumento para a instauração de qualquer tipo de socialismo teleologicamente definido. Nos modernos processos de mudança, o impulso de reconstrução é pelo menos tão importante quanto o da mera destruição abstratamente concebida e, para falar a verdade, só se muda aquilo que efetivamente se substitui, respeitados os requisitos postos pela concepção da política como hegemonia, como busca permanente e obsessiva de consenso, não como força ou constrição arbitrária.

Se isto faz sentido, era de esperar que o ator das reformas – a saber, o PT no poder e a densa rede de organizações na sociedade civil que há décadas lhe davam apoio – atualizasse na prática algo semelhante àquilo que há quase cem anos está presente no repertório gramsciano sob a rubrica de “revolução passiva”. Em sua primeira formulação, como se sabe, a revolução passiva ou revolução-conservação foi descrita como decapitação (política) do antagonista por parte das elites dominantes e assimilação, em lugar subordinado, das instâncias de renovação que ele postula, garantindo-se assim a neutralização da inovação histórica. Nas novas condições propiciadas pela democracia dos partidos e pelo voto universal, pode muito bem suceder que o ator das reformas (originalmente, o antagonista) assuma as rédeas do governo e se coloque como mola propulsora, mas não exclusiva nem essencial, de uma delicada construção de equilíbrios mais avançados na sociedade e no próprio Estado.

O poema que até agora nos guiou adverte o caminhante de que “al volver la vista atrás/ se ve la senda que nunca/ se ha de volver a pisar”. Uma esquerda moderna e reformista, uma vez no poder, sabe os passos que não pode repetir se é que pretende explorar, nem que seja tentativamente, as virtualidades positivas da revolução passiva, agora acionada em sentido transformador. A pura e simples decapitação (política) do adversário costuma ser um passo em falso rumo à atrofia da dialética democrática, ao dificultar, entre outras coisas, a necessária alternância no poder ditada por eleições livres e competitivas. A eventual posse dos palácios de governo não deve dar lugar a ruminações sofísticas sobre a diferença entre “ter o governo” e “ter o poder”, como se estar de posse deste último implicasse encenar outra vez o ritual da estadolatria e da limitação das capacidades de auto-organização da sociedade civil.

Não se pode esquecer em absoluto que os itinerários de Alberto Aggio, ainda que incertos e não suscetíveis de definição a priori, apontam todos “para uma esquerda democrática”. Por sua própria natureza, não podem passar de esboços que indicam sobretudo os roteiros que conduzem a becos sem saída e que, por isso, devem ser evitados. Ressalvadas as enormes diferenças de contexto, na história pregressa dos socialistas o autor destes itinerários encontrará pontos de afinidade – além de Gramsci, seu santo de cabeceira – com o inventor do sugestivo lema de que o fim não é nada, o movimento (democratizador) é que é tudo. Ou, para nos valermos mais uma vez de metáforas, estejamos certos nós, caminhantes, de que “no hay camino/ sino estelas en la mar”. Em geral, os poetas têm razão.

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