sexta-feira, 6 de julho de 2018

Fernando Abrucio: Liberalismo e democracia: união em crise

- Eu & Fim de Semana | Valor Econômico

A combinação entre liberalismo e democracia foi a principal chave do sucesso político e social dos países que mais se desenvolveram entre os séculos XIX e XX. Não foi um casamento fácil. Houve muitos conflitos e contradições entre eles e o caminho de aproximação desse par sempre foi visto com desconfiança por pensadores e atores políticos. Mas, como notou o filósofo Norberto Bobbio, todos os regimes democráticos só sobrevivem se incorporam ideias liberais, bem como somente é possível a existência de um modelo liberal em sociedades de massa caso haja a incorporação de todos os cidadãos no processo político. Por um tempo, a combinação deu certo, mas essa união hoje está em crise.

Para entender o significado e as consequências desse problema, é fundamental começar definindo os conceitos. Fala-se aqui de liberalismo especialmente no seu sentido político, que pode ser resumido como um ideário defensor das liberdades individuais e da limitação do poder político. Suas origens estão nas Revoluções Inglesas do século 18 e no pensamento dos pais fundadores dos Estados Unidos. O modelo liberal estava ancorado na necessidade de se garantir direitos fundamentais de liberdade, algo que apenas poderia ser obtido com a defesa do pluralismo e a separação clara das esferas do Estado e da sociedade.

O liberalismo político também se alicerça numa proposta institucional, baseada na separação e controle mútuo entre os Poderes. Evitar que haja a concentração de poder em qualquer tipo de autoridade, seja eleita ou não, foi uma preocupação central dos liberais, particularmente de James Madison, inspirador da estrutura institucional americana. Todas as vezes em que se concentrou demais a força política em uma instituição ou, pior, num líder político, caminhou-se rumo ao autoritarismo. Esse é o fim da liberdade.

A democracia moderna tem como base a expansão da igualdade política a todos os cidadãos. Isso significou, historicamente, o direito de criar organizações políticas e, sobretudo, de votar e ser votado. Hoje essa prerrogativa parece banal, a ponto de haver uma disseminação da crença de que a participação política tem pouco efeito sobre as grandes decisões da coletividade. Por isso, é preciso lembrar, constantemente, a batalha que foi garantir o voto aos que não tinham renda, às mulheres, a minorias políticas como os negros americanos e, para lembrar do caso brasileiro, para os analfabetos - cujo número só começou a decrescer como porcentagem da população quando puderam votar para pleitear mais educação a todos.

O sentido do ideário democrático moderno, ao contrário de seu funcionamento no mundo antigo, sempre foi ampliar a igualdade. Lógico que a participação política mais igualitária não é suficiente para garantir a maior equidade entre os cidadãos, porém, ela é uma condição sine qua non. Grosso modo, a trilha histórica dos países que mantiveram a democracia foi a seguinte: quanto mais gente votava, mais direitos eram garantidos à coletividade. Assim, a igualdade da esfera política pôde ser, em alguma medida, transferida para o plano das relações sociais e econômicas.

Nem sempre o controle do poder se casa com a expressão da maioria da população por meio do voto. Há casos de líderes políticos que chegaram ao poder com o apoio do povo para depois reduzir sua participação. O fato é que se os governantes tiverem seu poder limitado ao longo do tempo, há mais chances de a população poder votar continuamente. No sentido inverso, é muito difícil garantir a liberdade quando as desigualdades constituem a base do contrato social. Pensadores liberais como John Rawls e Amartya Sem perceberam como a existência de pontos de partida diferentes entre os cidadãos inviabiliza a liberdade para todos.

Foi no pós-Segunda Guerra, após o desastre dos regimes totalitários, que mais países começaram a conciliar melhor o liberalismo com a democracia. Não foi um caminho suave e sequer linear, pois o autoritarismo continuou forte em várias regiões do mundo, como na América Latina e suas ditaduras, geralmente ancoradas nos militares. Mas a partir do final da década de 1970 até o início da década de 1990, uma nova realidade começou a se constituir, com o surgimento de um número inédito de regimes democráticos. Neles, não só o povo começou a participar continuamente, como também o império da lei e os controles dos governantes ganharam maior relevância. Parecia que liberdade e igualdade se tornariam um casal perfeito para a grande maioria da humanidade.

Num processo que se iniciou na década passada e se prolonga até os dias de hoje, vários eventos revelam que a união entre liberalismo e democracia não vai bem em diversas partes do mundo. E não se trata aqui de citar nações que continuaram mantendo ditaduras de longa duração como Coreia do Norte e Cuba. Esse tipo de arranjo político não é o inspirador da crise atual. Em nome de um pretenso nacionalismo, da ampliação populista do poder ou de uma garantia da liberdade sem que o povo seja convidado para a festa, ideais liberais e democráticos começaram a se estranhar.

É um fenômeno que cresce paulatinamente e que abarca lugares estratégicos do mundo. A meteórica ascensão econômica e geopolítica da China no final do século passado já era o primeiro sinal de que o casamento entre liberalismo e democracia não se tornaria tão cedo um valor universal. Como a gigante nação chinesa continuará a expandir sua força nos próximos anos sem que a liberdade e a igualdade políticas sejam garantidas ao povo, haverá um grande exemplo de que é possível um outro caminho para o desenvolvimento, mesmo que à custa de muito autoritarismo.

O surgimento daquilo que vem sendo chamado de democracias iliberais é outra manifestação da crise atual. São regimes políticos que mantêm o processo de votação popular, mas que criam dificuldades para os opositores do governo (na eleição e fora dela) e, ainda, enfraquecem qualquer forma de controle institucional do governante. Com o tempo, esse modelo vai atingindo outras esferas das liberdades individuais, tanto as clássicas (como a liberdade de expressão) como as de novo tipo, presentes no conceito de diversidade (étnica, cultural, de gênero etc.). Países como a Turquia e a Venezuela já chegaram a tal estágio, e a Rússia é o país mais poderoso e bem-sucedido deste modelo, mantendo eleições e restrições de liberdade.

O discurso iliberal não prolifera apenas nos países menos desenvolvidos. O populismo de direita, quando não fascista, prolifera na França, Alemanha e, com mais força, em grande parte do Leste Europeu. O presidente Trump até contém algum desses elementos, como ficou claro no episódio da imigração e na forma como trata a questão racial. Mas os Estados Unidos são um caso bem mais complexo, porque a estrutura institucional de freios e contrapesos, por ora, tem barrado algumas ações do Executivo federal, embora nunca um governante dos EUA tenha chegado tão perto de colocar o modelo liberal em risco.

Menos comentado pelos estudos de ciência política e quase nada debatido na mídia, há um outro fenômeno relevante: o liberalismo com medo de democracia. Trata-se da visão mais vinculada ao globalismo e a uma defesa restritiva do modelo representativo. Em outras palavras, em nome da ordem econômica liberal propõe-se que o povo - principalmente os mais pobres e os que perderam empregos e status no sistema atual - e o governante por ele eleito devam admitir que nada pode ser feito para aumentar a igualdade, a não ser esperar que, num belo dia, ela surja das "boas políticas econômicas".

Nesse tipo de argumento, o populismo vira o maior inimigo, quando os liberais com medo de democracia deveriam estar preocupados com o verdadeiro fator que hoje afasta o liberalismo da visão democrática: o crescimento da desigualdade em todo o mundo, e sua manutenção em níveis insuportáveis nos países menos desenvolvidos.

E o que esse debate tem a ver com o Brasil, pergunta o leitor ansiosamente? Está intimamente ligado às eleições de 2018. De um lado, o mais antiliberal de todos os candidatos é Jair Bolsonaro, que propôs recentemente o aumento do número dos ministros do STF, para montar sua maioria lá. Esse foi o caminho da ditadura militar e de muitas outras experiências autoritárias recentes. Bolsonaro quer ganhar a eleição e não ter seu poder limitado. Por outro lado, o chamado centro reformista precisa apresentar propostas para combater a desigualdade, tornando-a prioridade número um da nação. Se seus representantes não souberem o que fazer com a exclusão social aviltante que há no país, de duas, uma: ou ficam sem chances de ganhar a disputa presidencial - os chamados extremos é que estão falando com o povo -, ou caso vençam o pleito, o que ainda é possível, terão enormes dificuldades para governar a panela de pressão brasileira.

Para ter um futuro melhor, o Brasil precisará reconciliar liberalismo e democracia, combinando os dois conforme as necessidades do país. Qualquer outro caminho será uma forma de restringir a liberdade ou a igualdade, ou ambas - tal qual já existe nas periferias urbanas brasileiras.
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Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e chefe do Departamento de Administração Pública da FGV-SP,

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