sexta-feira, 3 de agosto de 2018

Fernando Abrucio: Liderança política terá papel decisivo

- Eu & Fim de Semana | Valor Econômico

A análise política não é um exercício de adivinhação. Para isso já existem os tarólogos, cartomantes e afins. Cravar quem será o vencedor da eleição de 2018 não é o objetivo desta coluna. Em vez disso, propõe-se um modelo de análise do processo eleitoral vindouro, baseado em três fatores: o estrutural, o conjuntural e o da ação política. Os dois primeiros têm dominado o debate, por vezes até organizando o embate de visões. Mas o papel das lideranças tem sido negligenciado. E numa disputa presidencial tão difícil - a mais competitiva desde 1989 -, a capacidade dos partidos e, sobretudo, dos candidatos de manejar as circunstâncias será um fator decisivo.

As origens do modelo proposto aqui estão em Maquiavel, em seu célebre "O Príncipe". Foi ele que inaugurou a tradição de se analisar a política combinando dois elementos: a fortuna, que são as circunstâncias que envolvem os atores, e a virtù, que representa a capacidade dos líderes de se adaptarem e até alterarem, na medida do possível, as condições objetivas que os rodeiam. O pai fundador da ciência política mostrava que a ação política tem limites e é preciso conhecer os elementos que influenciam as decisões dos atores.

Mas também realçava que existe um espaço de liberdade para que as lideranças moldem o futuro, de modo que é necessário entender como os políticos agiram ao longo da história, especialmente em momentos adversos ou de forte pressão.

Seguindo as pegadas de Maquiavel, pode-se dizer que há três fatores essenciais no processo político. O primeiro diz respeito aos elementos mais estruturais, que se conformam num prazo temporal maior. Nesse campo, entram, em primeiro lugar, as características sociais mais amplas, como a estratificação socioeconômica ou valores culturais, inclusive os relativos à forma como a sociedade identifica o papel do Estado. Obviamente que essas feições não são adotadas homogeneamente pelos cidadãos. Num país complexo e desigual como o Brasil, existem fortes divisões entre os indivíduos, que se manifestam no plano territorial mais amplo - as regiões - ou mais restrito - a oposição entre bairros ricos e periféricos (ou entre asfalto e morro).

Outro elemento estrutural é o funcionamento das instituições políticas ao longo do tempo, o que envolve compreender quais são os condicionantes aos atores políticos que existem nas regras do sistema partidário-eleitoral e também a forma como os eleitores regem a isso. Padrões de comportamento eleitoral mais ou menos estáveis são encontrados em diversas democracias contemporâneas, algo que também pode ser visto no Brasil.

Um dos melhores livros para se compreender os fatores estruturais que agem sobre a política brasileira é o recém-lançado "O Voto do Brasileiro", de Alberto Carlos Almeida. O autor demonstra com vários dados, muito bem articulados entre si, como desde 2006 se conformou um padrão eleitoral que tem funcionado de forma estável nas últimas três eleições presidenciais. O livro mostra que se constituiu uma polarização no plano nacional entre PT e PSDB, que se espelha tanto numa divisão regional como no âmbito das condições sociais. Os tucanos dominam mais o Centro-Sul e os eleitores com melhor situação social, e os petistas concentraram os seus votos mais no Nordeste e naqueles que estão mais no "andar de baixo".

Claro que a combinação das características territoriais com as sociais faz com que o petismo também tenha voto para além do Nordeste, particularmente nas áreas metropolitanas, captando outra vertente da desigualdade brasileira.

Essa polarização se articula com uma distinção ideológica clara sobre o papel do Estado: os eleitores petistas querem maior participação governamental, e os tucanos, o inverso. É importante dizer que tal divisão foi fruto das escolhas de políticas públicas feitas pelos partidos e suas principais lideranças, e pela forma como comunicaram esse processo. O sucesso do PT durante mais de uma década se deveu, em boa medida, à capacidade de responder às demandas do eleitorado mais pobre, que é a maioria. Cabe reforçar que isso não seria possível sem a liderança de Lula e de seus principais assessores, que tomaram decisões nesse sentido. Dilma não teria alcançado esse resultado.

O fator estrutural, como dito acima, encontra-se ainda nos incentivos do sistema partidário-eleitoral. O modelo brasileiro tem favorecido os grandes partidos e suas coligações com os menores em busca da articulação do pleito nacional, mais bipartidarizado, com duas outras disputas: para os governos estaduais, onde há mais dispersão, mas ainda com concentração em poucos partidos, e para o Legislativo, exatamente o ponto que nutre a enorme fragmentação partidária do país. Essa dinâmica, aliás, foi reforçada pelas mudanças eleitorais recentes, especialmente no que tange ao financiamento de campanha, que favoreceu a partidocracia à brasileira. Isso foi claramente demonstrado por meu colega Fernando Limongi em seu último artigo no Valor .

O elemento estrutural não explica completamente os resultados das eleições. Há, em todas as sociedades, mudanças conjunturais que têm impacto sobre a politica. No caso brasileiro, a conjuntura está vinculada, principalmente, à combinação de três coisas: os efeitos da Lava-Jato, do impeachment de Dilma e de seus desdobramentos, bem como de uma enorme crise econômica e social. Trata-se de uma tempestade perfeita, que levou à grande parte do eleitorado a rejeitar, num plano mais geral, a classe política e, num plano mais específico, o bipartidarismo PT-PSDB, embora o peso maior de rejeição esteja no PT. É interessante observar isso num momento em que Lula, mesmo preso, mantém a liderança da corrida presidencial. Mas quando se colocam os cenários de segundo turno, as chances do lulismo diminuem fortemente, ao contrário do que ocorreu no seu período dourado (2002-2014).

O aspecto conjuntural aponta, à primeira vista, para maiores chances de candidatos de fora do eixo bipartidário dominante. Primeiro porque os políticos tradicionais e a dupla PT-PSDB sofrem uma forte rejeição. Além disso, o presidente Temer é o pior cabo eleitoral, dada sua impopularidade recorde, gerando uma situação inédita desde Sarney: a eleição não terá um polo governista forte. Nesse cenário, foram construídos nomes que buscam se colocar como alternativos ao sistema, principalmente Bolsonaro, Marina e, em alguma medida, Ciro. Daí que, num cenário sem Lula, são estes nomes, principalmente Bolsonaro e Marina, que lideram as pesquisas.

Vale ressaltar que se, por um lado, nunca sabemos o quanto os aspectos estruturais vão permanecer ao longo do tempo, a conjuntura, por outro lado, pode ser definida como algo de difícil definição por quem a vive. Ela é como as nuvens e sua inconstância, para parafrasear um antigo politico mineiro. Dois exemplos disso: a força e o apoio à Lava-Jato já não são os mesmos de um ano atrás, e o crescimento de Lula nas pesquisas revela que, embora o petismo ainda seja fortemente rejeitado, a rejeição ao governo atual está se tornando um elemento central do jogo político. De todo modo, não será uma eleição igual às anteriores por um simples fato: Lula está preso e não será candidato. Essa peça é a maior mudança conjuntural.

As principais análises da disputa presidencial agarram-se a esses dois fatores, com grande parte do mundo acadêmico ficando mais com o aspecto estrutural, e a seara jornalística, em sua maioria, abraçando os elementos conjunturais. Uma boa leitura tem de combinar esses dois vetores explicativos e acrescentar outro: a ação dos líderes políticos. Nas últimas (e decisivas) semanas pré-eleição, Alckmin conseguiu consolidar uma aliança ampla, que lhe dará um tempo de TV enorme e grande capilaridade nos Estados. Ciro teve maus momentos em seus discursos, o que lhe dificultou angariar novos apoios. Bolsonaro ficou mais isolado do ponto de vista partidário, mas já está se construindo como inimigo número um de duas coisas: do petismo e do casamento entre o Centrão e o PSDB. Marina parece que não saiu do lugar que está há meses, e o PT está esperando o que vai acontecer com Lula, cujas decisões o colocam mais como um mártir do que como um participante do jogo eleitoral.

Ainda há muito jogo a ser jogado. Sem dúvida é uma disputa bem mais incerta que as anteriores, porque a conjuntura colocou elementos novos que dificultam, mas não impedem, o bipartidarismo PT-PSDB, além de aumentarem a propensão pelo absenteísmo eleitoral. Porém, os presidenciáveis precisam contar com elementos estruturais ao seu favor, como os palanques estaduais ou o padrão de voto nordestino. Na junção dessas duas lógicas, a virtù dos candidatos será decisiva. Uma lista de desafios os colocará à prova: saber lidar com as pressões da mídia; debater com os oponentes sem se isolar numa parte do eleitorado; conquistar os corações e mentes dos mais pobres, que querem serviços públicos de qualidade; e, especialmente, identificar quem é o adversário principal para descontruí-lo, e quais são os ocasionais, que poderão ser apoiadores no futuro. Afinal, o presidenciável mais habilidoso será aquele que construir a ida ao segundo turno inviabilizando a vitória final do rival.
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Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e chefe do Departamento de Administração Pública da FGV-SP

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