sexta-feira, 10 de agosto de 2018

José de Souza Martins: Quem tem um olho emigra

- Eu & Fim de Semana | Valor Econômico

Em países que ficaram relativamente à margem da grande cultura, como o Brasil, é cotidiano o embate entre o conhecimento erudito e a ignorância, o desconhecimento que ganha corpo e poder no senso comum popular. É cada vez maior o abismo que os separa. E é cada vez mais significativo o poder do senso comum, multiplicado pelos recursos modernos de sua difusão.

Ainda nesses dias, o governo brasileiro lança nova campanha de vacinação contra sarampo e poliomielite porque milhões de crianças não foram vacinadas no devido tempo. Os pais descuidados da vacinação, induzidos por informações sem fundamento, difundidas pelas redes sociais e por boatos de gente de mentalidade formada na nova ignorância pós-moderna. É a dos que acham que sabem sem saber.

Um dos aspectos curiosos dessa mentalidade retrógrada é a facilidade na aceitação de interpretações sobre problemas brasileiros, por este ou aquele estrangeiro mais ousado, que agradem segmentos sociais carentes de reconhecimento de suas aspirações, justas ou não. Gostamos mais da bajulação do que da ciência. Os de fora nos dão a ilusão de sermos iguais a eles. Herança colonial, o herói mítico do povo brasileiro continua sendo o estrangeiro imaginário. E brasileiro bom é o que tem suposto reconhecimento no exterior.

Jovens brasileiros que fizeram doutorado fora do país querem dispensa da obrigação de voltar ao Brasil e aqui trabalhar para cumprir a obrigação contratual decorrente da bolsa de estudos brasileira que receberam para estudar lá fora. Seria uma honra financiar a formação de profissionais para os países ricos. Dar-lhes o que nos falta.

Uma frase irônica escrita na porta de uma das privadas da Faculdade de Filosofia da USP nos dias seguintes ao do golpe militar de 1964 sintetizava essa mentalidade subdesenvolvida: "Em terra de cego, quem tem um olho emigra".

Aqui e ali, estrangeiros mais ou menos familiarizados com o Brasil, eventualmente fazem afirmações sobre os nossos problemas, legitimadas pelo sotaque estrangeiro, não raro com diagnósticos impressionistas e com soluções que nunca ousariam propor em seus próprios países. No rol das afirmações fundadas nessa sabedoria fora do lugar está a de que a maioria do povo brasileiro é afrodescendente, por isso vítima de adversidades sociais graves. Seus problemas só serão resolvidos se for adotado aqui extensamente o regime de cotas raciais. Embora a afirmação esteja em conflito com os dados oficiais, os dos nossos censos demográficos, de que a maioria dos brasileiros é parda (referência de Caminha aos indígenas poucas horas após a descoberta do Brasil), em segundo lugar, branca; em terceiro, negra, cerca de 8% da população.

Num país como este, não é necessário falar em nome dos afrodescendentes propriamente brasileiros, que podem falar em seu próprio nome e em português fluente, para justificar políticas de ação afirmativa que amenizem as adversidades associadas ao estigma racial.

Do mesmo modo, não é necessário ser afrodescendente para justificar as ações afirmativas que ofereçam apoio à justa e necessária aspiração de ascensão social dos desvalidos, negros ou não, que são vitimados por largo elenco de injustiças sociais geradas pelas funções iníquas da desigualdade em que se funda nosso desenvolvimento econômico. Nossas escravidões continuam no fato de lamentarmos e nos punirmos por aquilo que não fomos ou nos tiraram, em vez de lutarmos por aquilo que podemos ser.

É verdade que tais injustiças têm suas raízes nas duas escravidões que marcaram a formação do Brasil: a indígena e a africana. As escravidões criaram entre nós um modelo de injustiça social e de alienação que lhes correspondem, culturalmente raciais, mas também sociais, sobretudo religiosas e profissionais.

Muitos afrodescendentes se queixam de que são vistos unicamente como aptos para o futebol ou para o samba. O que de fato rouba ao país talentos potenciais para o desenvolvimento das ciências e das profissões técnicas. Não é o afrodescendente o prejudicado, mas o país. Talvez fosse o caso de inverter o imaginário das cotas para conceder ao Brasil cotas em todos os segmentos sociais que delas careçam para expressar seus talentos nos vários campos do conhecimento.

Muitos sentem um certo conforto em ignorar o que realmente somos, quais são nossas carências e suas causas, em ser objeto da bajulação dos que levantam em nosso nome bandeiras de justiça social. Em ter a consciência adormecida para a diversidade do que somos e dos nossos problemas. A multiplicidade das causas que abatem nossa competência para sair das limitações. Esse aquém do que podemos ser e do que nossos jovens tem o direito de querer ser.
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José de Souza Martins é sociólogo e Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de “A Política do Brasil Lúmpen e Místico” (Contexto).

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