sexta-feira, 28 de setembro de 2018

César Felício: O choque cultural

- Valor Econômico

Haddad no polo oposto a Bolsonaro explica o #Elenão

Talvez seja a primeira vez em uma campanha eleitoral que manifestações de grande porte são convocadas contra um candidato, e não a favor. A campanha #Elenão, claro está, é a primeira ação em bloco com sentido eleitoral que o feminismo faz no Brasil. São 13 concentrações neste sábado em São Paulo, 7 no Rio Grande do Sul, 5 no Rio de Janeiro, 4 em Minas Gerais. Um dos atos está convocado para a Praça Halfeld, em Juiz de Fora (MG), a dois quarteirões do local do atentado contra o líder das pesquisas de intenção de voto para a Presidência.

O "gap" na questão de gênero era um desafio para Jair Bolsonaro desde o início da sua campanha. O candidato do PSL é uma espécie de arquétipo do macho-alfa, quase uma caricatura do homem opressor. No momento mais decisivo de sua carreira política, Bolsonaro optou por não fazer concessões e forjar sua candidatura sob a consigna de um só povo, uma só vontade, um só líder: dar espaço para mulheres, negros, gays, nordestinos etc seria dividir o que deve estar unido.

Negar a diversidade social e política, portanto, está no espírito da candidatura de Bolsonaro. Ela só faz sentido se não apresentar nenhuma transigência neste tema. Dos candidatos com alguma relevância, ninguém foi tão longe quanto ele. É certo que o tempo hoje não é de conciliação, mas das chapas que concorrem à presidência a encabeçada pelo deputado do PSL é a única que não conta com mulher como candidato a presidente ou a vice.

O embate gerado pelo #Elenão, contudo, vai além da questão da gênero. Ele ganha outro alcance quando a perspectiva de polarização anti-Bolsonaro está pendendo mais para Fernando Haddad do que para Ciro Gomes.

Ciro é um político convencional de centro-esquerda, dentro da tradição de alianças que marca a prática partidária do Nordeste nos últimos anos. Transita em vários nichos.

Haddad personifica uma esquerda muito centrada na questão de valores, que é ortodoxa na economia e arrojada em temas identitários.

A relativização cultural, tanto no Brasil como afora, não se dá sem fricções. Condutas que faziam parte dos usos e costumes estão à beira da criminalização e o reacionarismo vive um despertar. Bolsonaro se tornou relevante quando viveu sua epifania nos idos de 2010, ao se deparar com um seminário LGBT nas dependências do Congresso.

O combate ao mítico "kit gay", não por acaso uma polêmica que transcorreu na gestão de Fernando Haddad no Ministério da Educação, o projetou. Recapitulando a polêmica: em 12 de abril de 2010, Haddad assinara um despacho em que criou uma comissão coordenada pelo então secretário de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade André Lázaro, para a elaboração de um material anti-homofobia a ser distribuído na rede escolar. Meses depois, a tal comissão promoveu a fatídica reunião no Congresso.

Circulou material ainda em estudo no grupo, integrado por militantes LGBT e Bolsonaro acusou o ministério de preparar uma ação de doutrinação anti-hétero para crianças. A ação foi suspensa. Em entrevista ao "Cadernos Cenpec" em 2012, Lázaro reclamou que o governo não quis partir para o embate e que o movimento social tentou dar uma volta no MEC.

A confusão sobre o "kit gay" aconteceu poucos meses depois de outra grande polêmica do governo Dilma, a divulgação do Plano Nacional de Direitos Humanos, em que o governo enfureceu militares, ruralistas, religiosos e um vasto et cetera e onde também se voltou atrás.

Na Prefeitura de São Paulo, com poucos recursos, emparedado pelo junho de 2013, Haddad apostou na nova vertente da esquerda para se firmar. É ela um de seus pilares no momento, quando muitos desconfiam do grau de autonomia que terá em relação a Lula e da sombra do caixa dois que paira sobre suas contas na eleição passada. É notável o contraste entre a vice do petista, descolada mas com codinome na planilha da Odebrecht, e o vice do candidato do PSL.

Manuela e Haddad combinam perfeitamente. Já Bolsonaro e Mourão simbolizam a mesma coisa, mas é evidente a existência de um problema entre eles.

Mourão
O general Hamilton Mourão é um candidato a vice como jamais houve no Brasil. O assombro deu-se antes mesmo do 6 de setembro, ao criticar publicamente propostas de Bolsonaro para educação.

O espanto aumentou quando o vice se candidatou a substituir o titular acamado em debates, sem combinar com ninguém do bolsonarismo. Voltou a causar constrangimento quando demonstrou em entrevista simpatia pela tese de um autogolpe a la Fujimori. Em seguida desenvolveu a teoria do desajuste natural das famílias comandadas por pais e avós.

A crítica ao 13º salário divulgada ontem foi mais do que um tiro no pé da campanha, foi um soco no abdômen ferido do candidato, tão forte que provocou reação imediata no Twitter.

Bolsonaro afirmou que o artigo 7º, que trata dos direitos sociais, é cláusula pétrea na Constituição. Na realidade o tema é controverso, há dúvidas sobre o alcance do parágrafo 4º, artigo 60 da Constituição, que disciplina as cláusulas pétreas, mas a avaliação mais corrente é a de que o deputado está certo.

Em caso de vitória da dupla, é um governo que já nasce cindido entre presidente e vice, rompidos de antemão. A situação mais semelhante a essa na história brasileira foi a de Jânio Quadros e João Goulart, mas naquele caso presidente e vice eram eleitos de maneira separada.

Roriz
Joaquim Roriz jamais perdeu uma eleição no Distrito Federal da qual tenha diretamente participado. Sua vitória em 1998 foi marcante. Então ex-governador, concorria contra Cristovam Buarque, petista que disputava a reeleição.

O pleito ganhou uma narrativa de luta da "civilização" (Cristovam) contra as "trevas" (Roriz). O então petista havia lançados políticas pioneiras, como o programa Bolsa Escola e uma eficaz campanha de educação do trânsito em favor do pedestre. Roriz se notabilizara pelo português ruim e pela acusação de distribuir lotes em troca de votos. Mais votado no primeiro turno, Cristovam humilhou o rival no debate dias antes do segundo turno. Quando as urnas se abriram, a arrogância da centro-esquerda recebeu uma lição. As "trevas" venceram.
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César Felício é editor de Política.

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