quinta-feira, 20 de setembro de 2018

Hamilton Garcia: A que herança renunciamos? (IV) – a miseria do social-desenvolvimentismo

Se, como vimos no artigo anterior, a tradição de esquerda implica em alguma forma de regulacionismo econômico, de modo a redirecionar as políticas públicas em prol das necessidades sociais – o que propicia a sustentabilidade do desenvolvimento (pleno emprego) em proveito também da estabilidade democrática e social –, é certo que não é qualquer improvisação política oportunista, feita em seu nome, que pode garantir tal resultado.

A fórmula lulopetista de superação do nacional-desenvolvimentismo – quer de viés furtadiano (CEPAL), quer nacional-democrático (PCB) –, que ficou conhecida como “social-desenvolvimentismo”, tinha como objetivo priorizar o desenvolvimento social (inclusão) em contraposição ao mero desenvolvimento econômico do passado – concentrador de renda e difusor de miséria urbana –, além de libertar as classes populares da tutela do "Estado burguês", historicamente conservador e "comprometido com o capitalismo".

Como se sabe, a tutela teve apenas uma mudança de titularidade, em prol de um novo personagem cuja fórmula política é velha conhecida: o caudilhismo benfeitor (populismo). A operação, fadada ao sucesso entre as camadas mais pobres, em função da persistência das desigualdades sociais e políticas, também encontra eco na intelectualidade, como outrora (Estado Novo), dada sua marginalização em face do poder, além de funcionar como poderoso anteparo para o sistema de dominação via concessões, no dizer de Pedro Bastos , de um "mercado interno ativado pelo aumento imediato do salário real acima da produtividade" e “gastos correntes e em infraestrutura de cunho mais social do que vinculados ao mercado externo” (produção de ponta), provocando, no médio-prazo, o desencontro, verificado no Governo Dilma, entre consumo aquecido e gastos públicos elevados, e o crescimento da renda e da riqueza associada à produção interna capaz de financiá-los.

A estratégia sedutora, misto de idealismo utópico-socialista com oportunismo neopopulista, fizeram a festa de amplos setores sociais – do bolsa-família ao bolsa-rentista, passando pelo bolsa-Miami – às expensas do desenvolvimento, possibilitando ao PT manter-se no poder por 13 anos ininterruptos sem ameaçar os alicerces da dominação neopatrimonial e, ao contrário, promovendo sua renovação e reempoderamento na esfera burocrática, parlamentar, empresarial e sindical.

O logro – reconhecido, mesmo que por um lapso, por Frei Beto –, edulcorado pelo "combate à pobreza”, impulsionou a mais ampla e legitimada aliança neopatrimonialista desde Sarney, de olho fixo no voto dos mais pobres, para cativá-los sem elevá-los a formas sustentáveis de autonomia, ao mesmo tempo em que comprou a aquiescência dos mais ricos (rentistas e associados), instituindo uma ordem consumista/concentracionista ampliada que se apresenta como importante obstáculo, por cima e por baixo, para a efetiva mudança política.

A alternativa à armadilha lulopetista não conta, como seria de se esperar dada a falta de tradição, com um caminho compartilhado – sequela da morte prematura da ANL em 1935 (a evolução da esquerda – II) e da fragmentação da frente democrática em 1979 (a evolução da esquerda – IV) –, nem tampouco com instituições partidárias adequadamente constituídas – dada as deformações conhecidas do sistema político-eleitoral –, o que torna o desafio atual bastante complexo. É certo, porém, que ela pode se impor, apesar da impotência e deformações existentes, dada a gravidade da situação criada pelo esgotamento do Estado neopatrimonial ampliado inaugurado em 1985 (Nova República).

Os pródomos desta saída já se vislumbram, fragmentariamente, nas dissidências partidárias do petismo (Marina Silva), do lulismo (Ciro Gomes) e do peessedebismo (Álvaro Dias); a primeira se destacando na propositura frentista, o segundo na explicitação de um programa econômico consistente e o terceiro realçando a necessidade de refundação ético-institucional do país.

Cada um deles acrescenta um tijolo fundamental para a construção de uma alternativa democrática para crise, mas terão que se coligar no futuro para dar competitividade a seus propósitos. O cimento desta coalizão em germe, todavia, está, como se sabe de longa data, na variável infraestrutural do programa, onde se assentam as classes sociais fundamentais em meio à multiplicidade de determinantes e grupos de variadas origens. É nele que se ancoram as diversas perspectivas do progresso social desde o alvorecer do capitalismo.

É por esta razão que o candidato do PDT (Ciro Gomes), não obstante suas graves ambiguidades políticas e de seu partido, vem se destacando como uma possibilidade vigorosa para virar a página do anacronismo político que dominou a esquerda até aqui, eludindo a necessidade urgente (há 16 anos!) das reformas para a retomada do progresso econômico-social do país.

A pregação de Ciro Gomes, em linha com o pensamento do Prof. Bresser-Pereira , converge para "a formação de uma coalizão de classes desenvolvimentista que associe empresários empreendedores, trabalhadores e a burocracia pública”, cujo principal desafio seria o de reverter a asfixia do setor público causada pelo descontrole dos gastos ordinários, das isenções tributárias, da predação rentista sobre a dívida pública e privada, da armadilha corporativista sobre o setor público e do parasitismo patrimonialista arraigado na federação – gerador de corrupção e de desvios de função –, que compõem o sistema dominante que desestabiliza o país desde a Segunda República (1930) e que o PT tratou de totemizar na figura de um líder condenado e preso pelos crimes correlatos ao atraso.
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Hamilton Garcia de Lima, Cientista Político, professor da UENF

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