sexta-feira, 21 de setembro de 2018

José de Souza Martins: Deus, eleitor

- Eu & Fim de Semana / Valor Econômico

No Brasil eleitoral, o próprio Deus foi raptado e instrumentalizado. Vários candidatos e partidos, hereticamente, converteram Deus em reles cabo eleitoral e patrono da antipolítica do fanatismo. Está pressuposto no gesto do dedo no gatilho e na afirmação daquilo que nega Deus, o justiçamento, a negação dos humanos direitos de todos. Pelotão de fuzilamento não é Justiça. Esfregar a Bíblia na cara dos outros é pedrada, não é argumento de fé.

Deus está sendo arrastado pelo íngreme calvário das conveniências eleitorais dos ambiciosos que se colocaram em seu lugar e lhe puseram nos ombros a pesada cruz em que será crucificado de novo e esquecido.

Deus é nisso "fake news" pós-moderno, um ser banal e descartável, feito para enganar, ludibriar os simples e crédulos. Os pobres, a classe média, os abonados e assustados. É que, na teologia popular brasileira, o verdadeiro Deus é negação da negação. Há que admitir e vencer antes a negação reveladora, Satanás e a função religiosa e política do mal que é própria dele.

Na concepção popular, a usurpação levará para as profundezas os atrevidos. A beira do caminho do nosso oportunismo político está cheia de descartes dos que usurparam o nome de Deus para enganar o povo. A tecnologia publicitária não tem como evitar o banimento, da memória coletiva, do nome e dos abusos daqueles que conspurcaram o território do sagrado. Fé autoindulgente não é fé. É coisa de outra coisa.

Na cultura popular, Satanás é o ente antagônico e desconstrutivo cuja malignidade e mediação nega, e nisso revela, a deidade de Deus e a importância do sagrado na vida humana. Não importa qual a confissão religiosa em torno da qual as pessoas se agrupam para comungar sua fé, para compartilhar o pão da esperança. O deus eleitoral não é o Deus que sacia, mas o deus que nega a diversidade emancipadora do homem, pune, açoita, segrega, confisca direitos e liberdades. Não é o Deus dos que têm fome e sede de Justiça.

O crônico oportunismo político daqui, não raro com a cumplicidade de igrejas, descobriu o tesouro diabólico da manipulação das religiões para angariar votos para os famintos de poder. Satanás gosta de poder e de dinheiro, especialmente quando o poder manipulado pode ser fonte de riqueza. Opõe-se ao Deus do povo que é o Deus dos profetas, não o deus de tronos e palácios, não o deus do poder.

Em nossa literatura de cordel o inferno é um grande mercado, onde tudo tem preço, até a alma e a consciência. Nessas crenças, Satã é o mercador que oferece o paraíso do poder e da riqueza em troca da alma dos ambiciosos. É bíblico.

Na região amazônica e no Centro-Oeste conheci sertanejos que, na soma dos diferentes valores numéricos da meia dúzia de cédulas do dinheiro de então, chegavam ao 666, o número apocalíptico da Besta-fera, o satanás do fim dos tempos. Especialistas que decodificaram o número enigmático concluíram que é o nome em código do imperador Nero, a figuração política do mal, assassino da própria mãe. O dinheiro popular não é esse da Casa da Moeda.

Estou, é claro, me referindo às disseminadas concepções populares polarizadas entre o bem e o mal. Tratam do pêndulo regulador de nossa consciência social, a matriz profunda de nossas concepções e das nossas decisões, seja na vida pessoal, seja na vida política. Os que raptaram Deus, portanto, trouxeram para a política brasileira o maligno que o nega. O cheiro de incenso impregnado do de enxofre.

É inacreditável a facilidade abusiva com que os oportunistas da política brasileira se apossam das crenças para nos enganar, para violar a própria lei neste país em que, desde a proclamação da República e desde antes da primeira Constituição republicana, o Estado se separou da igreja e assegurou a liberdade civil das diferentes confissões religiosas. Religião, no Brasil, em vez de ser praticada e respeitada como afirmação do direito à fé e do respeito aos direitos do outro, é praticada como instrumento de coerção e de dominação. De fato, o uso antidemocrático da religião é, no Brasil, um crime, uma violação dos direitos políticos dos cidadãos.

Aqui, diferentes grupos populares falam e compreendem a língua do espírito que humaniza, não a do que coisifica. Francisco Julião, líder das Ligas Camponesas, contou, certa vez, que quando começou sua militância política, ligada aos direitos dos trabalhadores rurais, descobriu que tinha que ler a Bíblia para poder conversar com eles. Era a chave do imaginário dos pobres da terra. Os direitos eram bíblicos, passavam pelo respeito ao sagrado.

Hoje, aqui, é a violação dos direitos sociais e os de convicção que passa pela instrumentalização político-partidária do sagrado. O próprio Deus está em perigo.
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José de Souza Martins é sociólogo. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de “A Sociologia como Aventura” (Contexto).

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