sexta-feira, 28 de setembro de 2018

José de Souza Martins: Nosso binarismo ideológico

- Eu & Fim de Semana | Valor Econômico

Os resultados das pesquisas eleitorais, nestes dias finais da campanha, vão confirmando uma tendência histórica da política brasileira: a do binarismo ideológico. A dispersão de votos pelas dezenas de partidos encobre a tendência binária que sob eles resiste como reguladora oculta da nossa mentalidade política.

Ainda estamos divididos entre os que foram subjugados pelo mandonismo local e a dominação pessoal e os residualmente esclarecidos que podem exercer a crítica dos projetos políticos na perspectiva da esperança e do possível. A ideologia pendular PT x PSDB revitalizou o binarismo e limitou gravemente nosso horizonte político.

No interior dos próprios partidos políticos essa polaridade é visível. É o caso do Partido dos Trabalhadores. Está no desencontro das opções eleitorais entre sua figura simbólica mais expressiva, a do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, e o partido. Nas consultas, os números em favor de Lula são muito maiores do que os números em favor do PT. Não só agora.

O PT vai bem quando os eleitores reconhecem a convergência dos dois. Vai mal quando se separam, quando os eleitores que se identificam com Lula não se identificam com os candidatos do partido. Dá certo quando o partido pega carona no carisma de Lula. Ou seja, o PT dá certo quando não é partido, quando é apenas agrupamento de acólitos do líder, mas não agentes de afirmação de uma doutrina e de uma teoria de superação das contradições sociais. As que afligem aqueles que esperam ter suas carências devidamente consideradas pelo partido num ideário de desenvolvimento social como condição do desenvolvimento econômico.

Isso tem acontecido também com outros partidos. Com o próprio PSDB, como experiência partidária oposta à do PT. O partido deu certo enquanto se manteve aglutinado em torno da personalidade referencial do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e do que ele representa como teórico do poder e do processo político brasileiro. Não deu certo quando quis dele se distanciar, criando núcleos internos de poder divergente.

Em boa parte, isso ocorreu porque Fernando Henrique Cardoso, radicalmente diferente de Lula, é um adversário do poder pessoal, tem uma referência solidamente social-democrática de sua orientação política. O partido se fragilizou quando começou a se fragmentar, especialmente em São Paulo, quando deixou de reconhecer aquilo que FHC representava como pensador das possibilidades do partido e do processo político.

Lula, ao contrário, é a orientação de si mesmo, de modo competente alinhado com o imaginário popular do poder. Lula é culturalmente bilíngue: ele compreende as manhas e debilidades do poder político. Coisa que, em geral, os petistas não compreendem porque fragilizados pela diversidade de doutrinas divergentes e até incoerentes do PT. Ao mesmo tempo, Lula compreende a linguagem popular, as ocultações do silêncio dos simples e da eloquência do não dito. Coisa que nenhum outro político brasileiro sabe fazer. Mas conhecimento inútil para quem está preso.

Nesse sentido, mesmo que não o saiba, Bolsonaro é uma versão superficial e equivocada de Lula. Porque quer falar a linguagem popular das esquinas e da rua sem conhecê-la como linguagem de sobres significados que é. Expressa a raiva da classe média, mas não conhece o que é propriamente a língua do povo. Reafirmar estigmas depreciativos sobre a mulher, ou sobre os que não fazem parte de uma imaginária classe média branca e intolerante, comprova a distância enorme que há entre o candidato e essa fala peculiar e difícil. Sem o saber, passou a falá-la quando foi esfaqueado e hospitalizado. Mesmo que não saiba e não queira, a compaixão popular falou em seu nome a língua que ele não conhece nem decifra.

Nela não conhece nem reconhece o bilinguismo do povo brasileiro, a dupla linguagem a que fomos condenados desde nossas origens como povo que falava sua própria língua, mas foi obrigado pelos poderes da dominação colonial a falar a língua do conquistador, a língua da subjugação, a versão superficial da língua do mando e portanto da compreensão superficial das contradições e embates da vida. É a língua da inautenticidade, do ser que não somos nem temos conseguido ser.

Na polarização das opções por candidatos, neste momento, mais da metade dos eleitores ficará fora da decisão eleitoral. No voto meramente residual da recusa e não da escolha, o voto contra o candidato que não representa a opção do eleitor, mais de 50% dos eleitores têm seu direito de voto negado. Deixarão de votar em seu candidato para votar em quem não escolheram. Será o voto imposto pelo negativismo da circunstância, e não o voto livre da maioria silenciada.
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José de Souza Martins é sociólogo. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de "A Sociologia como Aventura" (Contexto).

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