quinta-feira, 27 de setembro de 2018

*José Serra: Genéricos hepáticos

- O Estado de S.Paulo

É fundamental manter a elogiável decisão judicial que quebrou a patente do Sofosbuvir

No final dos anos 1990 fizemos uma grande mudança no mercado de remédios no País, com a regulamentação dos medicamentos genéricos – muito mais baratos do que os produtos patenteados. Os genéricos foram fundamentais para garantir qualidade e preços acessíveis para a população brasileira, cujos gastos com a compra de remédios equivaliam, em média, a cerca de metade do orçamento das famílias com despesas de saúde.

Foram introduzidas também regras mais rigorosas para o pedido de patentes. A criação mesma da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) obedeceu a esse propósito. A Anvisa passou a se manifestar previamente sobre as questões de saúde pública nos pedidos de registros de patentes feitos ao Instituto Nacional de Propriedade Intelectual (Inpi). Quando a agência nega um pedido, por entender que há riscos para a saúde dos usuários potenciais, o processo é necessariamente arquivado.

Entendamos bem: o registro da patente de um medicamento confere ao seu proprietário o monopólio da respectiva produção, diretamente ou mediante venda do direito de fabricação a outros produtores. Esse monopólio lhe garante a possibilidade de fixar preços mais elevados.

Um argumento contrário seria o de que a negativa do registro de patente implicaria desestímulo à pesquisa, mas só se aplicado aos países desenvolvidos, onde se concentram cerca de 90% das inovações farmacêuticas e cujos mercados consumidores dispõem de renda média individual bem superior à que prevalece nos países em desenvolvimento. Mesmo assim, não faltam argumentos aos defensores de genéricos nesses países mais avançados: as pesquisas para produzir novos medicamentos são, em boa medida, financiadas por recursos públicos.

Voltando ao Brasil, é importante lembrar que a implantação dos genéricos entre nós – há cerca de 20 anos – esteve ligada à evolução do tratamento da aids, que crescera rapidamente entre as décadas de 80 e 90. A redução do custo dos medicamentos era essencial para manter o atendimento crescente. O número de pessoas atendidas já era de 55 mil em 1998, mais que dobrando entre aquele ano e 2002 e chegando ao triplo em 2005.

No Brasil, foi graças aos genéricos que o custo dos medicamentos por indivíduo portador de aids caiu 75% entre o final dos anos 90 e meados da década seguinte, tornando viável aquela que viria a ser considerada a melhor campanha do mundo contra essa doença, entre os países em desenvolvimento.

De fato, o novo março legal para introduzir os genéricos – Lei n.º 9.787, de 10 de fevereiro de 1999 – não só transformou positivamente o cenário farmacêutico nacional, como trouxe literalmente mais saúde ao País. Indo além dos retrovirais do tratamento da aids, os genéricos consolidaram-se como um vigoroso instrumento de acesso a medicamentos.

Estima-se que ao redor de um terço de todos os medicamentos consumidos via farmácias sejam genéricos, com preços de varejo em média 60% menores que os de marca. Milhões de brasileiros puderam assim seguir com regularidade seus tratamentos, especialmente os voltados para as doenças crônicas.

Desde que chegaram ao mercado em 1999, os genéricos já proporcionaram uma economia de mais de R$ 88 bilhões em gastos dos consumidores com medicamentos. O valor é potencialmente maior, já que o dado não captura o benefício adicional que os genéricos exercem como reguladores de mercado, ao forçarem a adequação de preços dos medicamentos de referência que lhes deram origem.

Os números são incontestáveis. Em 1999 o consumo de anti-hipertensivos não ultrapassava a marca de 67 milhões de unidades por ano no Brasil. Passados 18 anos da chegada dos genéricos ao mercado, o número de unidades saltou para 431,4 milhões, consolidando crescimento de 543% no período.

Entre os antilipêmicos, usados para diminuir o colesterol, o salto foi ainda maior. Em 1999 o mercado total para essa classe de medicamentos era de 3,4 milhões de unidades. Em 2016 o número saltou para 67,3 milhões de unidades, um avanço de 1.880%.

Diante dessa bem-sucedida história dos genéricos, causou grande surpresa, na semana passada, a reportagem de Patrícia Campos Mello, na Folha de S.Paulo, informando sobre a decisão do Inpi de conceder à empresa farmacêutica americana Gilead a patente sobre o medicamento Sofosbuvir, que cura a hepatite C em 95% dos casos. A concessão impede que o laboratório estatal da Farmanguinhos produza o Sofosbuvir genérico – que já havia sido registrado pela Anvisa e causaria uma economia superior a R$ 1 bilhão s para os cofres públicos em 2019, quando o Ministério da Saúde prevê tratar 50 mil pessoas. Neste ano estão sendo atendidos 19 mil pacientes.

O custo do genérico fabricado para o Ministério da Saúde seria equivalente a um quarto do mesmo produto fabricado pela Gilead. Note-se que, no Brasil, se estima que o número total de pessoas portadoras do vírus da hepatite C se eleva a 700 mil e a cada ano cerca de 3 mil pessoas perdem a vida por essa doença.

A mesma reportagem informou, ainda, que países como Egito, Argentina e China não concederam a patente a Gilead e produzem seus genéricos. A citação da Argentina soou para mim como uma ironia: quando ministro da Saúde do governo FHC, época em que implantamos os genéricos, visitei o então presidente Fernando de La Rúa para incentivá-lo a introduzir os medicamentos genéricos no seu país, seguindo nossa bem-sucedida experiência...

Quando este artigo já estava escrito, deparei com a notícia de que liminar deferida pela Justiça Federal em Brasília, solicitada por Marina Silva, quebrou a patente do Sofosbuvir, o que permitirá sua produção pela Farmanguinhos a preços menores. Mas essa liminar não esgota o assunto, pois haverá recursos dos perdedores. Ou seja, devemos continuar a tratar do tema, mostrando a importância de se manter a elogiável decisão judicial.
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*Senador (PSDB-SP)

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