quinta-feira, 11 de outubro de 2018

José Serra*: Constituição na crise dos 30

- O Estado de S.Paulo

Precisamos reagir contra as sinalizações de mudanças constitucionais radicais

Há 30 anos, completados semana passada, foi promulgada a atual Constituição, que Ulysses Guimarães batizou de “cidadã”. O texto resultou dos trabalhos da Constituinte eleita em 1986, da qual participei ativamente, mediante a apresentação de ao menos duas centenas de emendas, 60% delas aprovadas. Além disso, fui relator dos capítulos sobre orçamento, tributação e finanças.

Desde então sempre me alinhei à tese de que a maior virtude da Carta de 1988 é sua vocação garantidora de direitos. De fato, ela expressou o repúdio ao período autoritário (1964-1985) - repleto de pressões golpistas e agressões aos direitos individuais. A nova Carta consagrou esses direitos e a liberdade de opinião, manifestação e organização. Também criminalizou o racismo, aboliu o banimento e a pena de morte, afirmou a liberdade religiosa, o repúdio à tortura e aos tratamentos desumanos ou degradantes. Tudo condensado no artigo 5.º, formado por 78 dispositivos.

Além disso, outros avanços foram a concepção do SUS e a criação (de minha autoria) de um fundo que reuniu as contribuições do PIS-Pasep para tornar viável o seguro-desemprego e financiar investimentos. Importantes também foram os capítulos sobre finanças públicas e controle externo do Executivo e do Legislativo. Ampliaram-se as atribuições do Ministério Público e dos Tribunais de Contas. Aumentou também a abrangência do orçamento fiscal, que absorveu as rubricas de seguridade social e investimentos das estatais.

Do outro lado da balança estão os “defeitos” da Constituição de 1988, que vão da prolixidade ao seu caráter programático, abrigando minudências típicas de lei ordinária e estabelecendo não apenas as regras do jogo da sociedade, mas também os resultados das partidas.

Isso se deu, em parte, porque a convocação da Constituinte foi uma bandeira da oposição ao regime militar desde meados dos anos 70. Para a sociedade, ela aparecia como a grande saída para a volta da democracia e para o avanço do bem-estar material. Esperava-se que os problemas econômico-sociais fossem resolvidos pela Constituição.

Essa “responsabilidade” redentora da nova Carta acabou sendo ampliada pelo Congresso já em 1987, quando começou a Constituinte, precisamente depois do colapso do Plano Cruzado, que representou a primeira grande (e fracassada) tentativa de derrubar a superinflação. Esse colapso comprometeu o apoio político do governo presidido por José Sarney, que assumira o comando do Poder Executivo com a morte de Tancredo Neves, no início de 1985. O PMDB era o maior partido de sustentação do governo.

Naquela conjuntura conturbada, a maioria dos constituintes procurou responder à insatisfação social mediante a aprovação de dispositivos constitucionais detalhistas e cada vez mais generosos do ponto de vista social, federativo e regional. Assim, da arena da Constituinte brotou um texto prolixo e influenciado pelas contingências econômicas e políticas do momento. No critério de tamanho, somente as Constituições da Índia e da Nigéria são mais prolixas do que a nossa.

O corporativismo no interior da administração pública foi extremamente reforçado. Por exemplo, concedeu-se a estabilidade aos servidores públicos não concursados que estavam empregados havia mais de cinco anos da data de promulgação da Carta. Abriu-se também o caminho para as isonomias salariais no setor público, um poderoso e perverso mecanismo de geração de despesas permanentes.

Em relação ao federalismo, o fato mais notável foi a acentuada redistribuição de receitas a favor de Estados e municípios, desacompanhada, no entanto, da transferência de encargos da União. Recente estudo da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) concluiu que o sistema federativo brasileiro é um dos mais incoerentes do mundo: descentralização de receitas para os governos subnacionais e centralização de encargos para o governo central.

Diante desse histórico, cabe hoje perguntarmos o que fazer. Começo assinalando o que não se deve fazer: sou contra a convocação de uma nova Constituinte eleita pela população, que abriria caminho para instabilidade política e econômica sem igual. Não há por que imaginar que uma nova Constituinte faria tudo certo. Ao contrário.

Do mesmo modo, não me parece pertinente a instalação de um poder constituinte ao estilo Hugo Chávez ou na tradição do famoso AI-5. Isso representaria um golpe de Estado, desrespeitando frontalmente a atual Constituição, cujo artigo 60 é bastante claro: mudanças constitucionais podem ser propostas no processo parlamentar, com aprovação de 3/5 nas duas Casas, desde que não modifiquem a forma federativa de Estado, o voto secreto, direto, universal e periódico, a separação dos Poderes e os direitos e garantias individuais.

Combatendo o bom combate e respeitando as regras do jogo, tive a oportunidade de ser autor de 17 propostas de emenda constitucional, que resultaram em três importantes e históricas mudanças da nossa Lei Maior. A primeira possibilitou alterar as datas da revisão constitucional. A segunda revogou o bizarro dispositivo que fixava o teto de 12% para as taxas de juros reais da economia. A terceira - aprovada no ano passado - instituiu um novo regime para tornar viável a quitação das dívidas de precatórios pelos governos estaduais e municipais.

Mas a Constituição federal inegavelmente atravessa uma crise existencial. Precisamos reagir contra as atuais sinalizações de mudanças constitucionais radicais - emitidas por representações dos partidos que disputam o segundo turno para presidente -, tendo sempre conosco as palavras de Ulysses Guimarães: “A grande força da democracia é confessar-se falível de imperfeição e impureza, o que não acontece com os sistemas totalitários”.
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* Senador (PSDB-SP)

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