terça-feira, 9 de outubro de 2018

Merval Pereira: Narrativa renovada

- O Globo

Eleitorado tirou caciques da vida pública, velhas lideranças e seus filhos não foram reeleitos, a despeito do poder econômico

Entre mortos e feridos, poucos se salvaram, mas entre estes o PT, paradoxalmente, é um dos que resistiram à onda bolsonarista, apesar de derrotas emblemáticas em todo o país e de ter sido confinado ao Nordeste, e mesmo assim não nas capitais e grandes cidades. Além de ter elegido a maior bancada da nova Câmara, reelegeu no primeiro turno os governadores da Bahia, do Ceará e do Piauí. E governadores aliados no Norte e Nordeste como Renan Filho, do MDB de Alagoas; Flávio Dino, do PCdoB no Maranhão; João Azevedo, do PSB na Paraíba; e Paulo Câmara, do PSB em Pernambuco. E está no segundo turno da eleição presidencial pelo quinta vez seguida, embora pela primeira vez em posição de desvantagem.

A bancada petista no Senado caiu de nove para seis, mas, exceto o MDB, com 12 senadores (tinha 18 antes), nenhum outro partido terá mais representantes. O PT já tem papel de destaque caso Bolsonaro confirme sua vitória no segundo turno: liderará a oposição.

Seu oposto tradicional, o PSDB, sai das urnas ferido de morte. Por sua tibieza, foi engolido pela onda conservadora que varreu o país, fez apenas a nona bancada da Câmara, quando era a terceira, mas pode ter um fôlego se eleger os governadores de São Paulo, Rio Grande do Sul e Minas.

Os que se surpreenderam com o resultado das urnas não levaram em conta que o sucesso de Bolsonaro é produto de três coisas: deu voz a uma onda conservadora nos costumes; fala claramente em combate mais feroz a bandidos, fortalecendo a atuação das polícias e mexendo na legislação; e, finalmente, o desmonte dos partidos tradicionais.

A onda de antipetismo que se formou no país tem papel complementar às duas primeiras, pois o PT está sendo associado pela maioria dos brasileiros com o que seria um abandono dos valores tradicionais e a leniência com os bandidos em nome dos direitos humanos.

Aconteceu a renovação na política que era desejada pela sociedade civil desde 2013, quando espontaneamente cidadãos saíram às ruas para cobrar, basicamente, melhores serviços do Estado. A democracia foi apropriada pelas pessoas em suas redes sociais. Um candidato tosco, por vezes com posições repulsivas, sem sair do hospital e de casa, ganha 50 milhões de votos sem dinheiro nem tempo de TV.

Os partidos, “donos” dos espaços político-partidários, tentaram impedir essa renovação, financiando preferencialmente os candidatos à reeleição com o Fundo Partidário, usado para o fortalecimento das cúpulas partidárias. O resultado é que na Câmara Federal teremos 47% só de deputados estreantes, uma revolução que os eleitores forçaram o establishment a aceitar. Menos da metade dos deputados conseguiu se reeleger. O que não quer dizer que o nível da Câmara melhorará. Pela amostra que já temos, com até ator pornô sendo eleito, não é garantida a qualidade da representação.

Jair Bolsonaro influenciou as eleições em todos os estados, e o eleitorado tirou vários caciques da vida pública, velhas lideranças e seus filhos não foram reeleitos, a despeito do poder político e econômico. Uma consequência desse desmanche dos partidos tradicionais é o fracionamento maior da Câmara, que terá 30 partidos representados, em vez dos já exagerados 25 que lá atuam.

As maiores bancadas serão do PT, com 56 deputados, e PSL, que, de insignificantes oito deputados, tendo elegido apenas um em 2014, passa a ter 52, e provavelmente aumentará ainda mais com as adesões que os partidos que estão no governo recebem.

O PMDB foi o que mais perdeu cadeiras: caiu de 66 eleitos em 2014 para 34 em 2018. Esta eleição foi uma prova de vitalidade democrática do país, apesar da onda de fake news. Por fim, há o surgimento de uma consciência liberal e antipetista que surpreendeu.

O plebiscito foi não só em relação ao impeachment de Dilma, mas também em relação à prisão de Lula e à atuação da Lava-jato. Dos inúmeros significados desta eleição, um deles, por seu simbolismo, chama especial atenção: a ex-presidente Dilma teve a sua candidatura ao Senado recusada pelos eleitores mineiros, que lhe tiraram os poderes políticos que foram mantidos por uma interpretação fajuta da Constituição avalizada pelo então presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Ricardo Lewandowski. E a advogada Janaína Paschoal, coautora do pedido de impeachment, foi a deputada mais votada da história.

De forma clara e plebiscitária, a tese do golpe foi rechaçada. O povo chancelou o impeachment de Dilma e enterrou a narrativa do golpe.

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