segunda-feira, 8 de outubro de 2018

PT tem responsabilidade pelo cenário de extremos, diz sociólogo

Bolsonaro é uma pessoa, não um partido. O partido dele não é nada. Ninguém sabe direito o que é. Não tem doutrina

Por Robinson Borges | Valor Econômico

Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista com o sociólogo José de Souza Martins, integrante da Academia Paulista de Letras e colunista do Valor.

Valor: De quem é a responsabilidade pelo cenário de extremos?

José de Souza Martins: Em boa parte é do PT, que optou por constituir um partido sem conexões e adjacências em nome de uma pureza ideológica. O PT tem certa responsabilidade nessa orientação. Acho que uma certa responsabilidade do PSDB também, que entrou no jogo e caiu na armadilha. Fez o jogo de polarizar com o PT. Estas eleições mostram isso. Os eleitores optaram por descartar o binarismo da política, entre PT e PSDB.

Valor: Muitos atribuem à narrativa do "nós contra eles", que o então presidente Lula iniciou no mensalão, como a raiz da polarização destas eleições. O senhor concorda?

Martins: Teve impacto enorme. Tanto o PT quanto o PSDB, mas principalmente o PT, não perceberam que ocorriam transformações sociais. Essa polarização tinha certo sentido no nascimento do PT. Havia uma classe operária contra os intelectuais e a classe média. O partido não queria ambiguidades na composição social. Se você pegar o ABC paulista, a classe operária não existe mais, o cinturão vermelho desapareceu. Há um quadro de transformação social que o partido não acompanhou. O PSDB tampouco. Houve esvaziamento por aí. Lula pode ter percebido isso, mas tratou de transformar o PT não em um partido dos trabalhadores, mas em um partido do Lula.

Valor: O senhor sempre foi um crítico do caráter messiânico do ex-presidente Lula...

Martins: Sempre fui crítico do messianismo do Lula. Não é algo moderno, não tira o país do buraco, cria uma série de problemas que dificultam o processo político. O PT tem que se transformar, se quiser sobreviver, em um partido moderno. Mas há apego ao Lula, um homem que não tem condições de dirigir nada. Ele está preso e tem ainda outros processos pela frente. Isso bloqueia o partido.

Valor: Muitas críticos dizem que Haddad não existe por si só, e que sua campanha e eventual governo seriam uma espécie de linha auxiliar do ex-presidente Lula...

Martins: Se for por aí, o PT acabou. Será o partido lulista, que é outra coisa. O partido [teria de ter] algum vínculo com os trabalhadores e com a ideia de injustiça social, que precisa de ser combatida, que é necessário ter programas que precisam ser superados. O Lula não é alternativa para isso. O que vai sobrar é muito pouco. Além do que, Lula está na cadeia. [O PT que sai das eleições] vai ser residual, sem diálogo com nenhum setor da sociedade, nem mesmo com o que resta da classe operária. Por isso, digo que o Haddad deveria ter assumido corajosamente a ideia de propor a saída já nesta eleição. Ele provavelmente teria conseguido mais votos. Não é o filho contra o pai, mas um ato de renovação do PT. Seria uma conciliação, não com este centro, o centrão.

Valor: Uma crítica que se faz ao PT é que o partido nunca fez uma mea-culpa por seus erros. O senhor avalia que parte da rejeição ao PT e a migração para o candidato do PSL decorrem dessa questão?

Martins: Provavelmente, sim. O PT nunca assumiu o pensamento crítico, que é próprio da tradição de esquerda. Mesmo quando, no caso do antigo Partido Comunista, o pensamento crítico operou tardiamente. Mas, a partir daí, mudava toda a interpretação. O PT não assumiu nem isso. Agarrou-se à ideia de que o PT não comete erros. Os erros são sempre dos outros. Isso deveria ter sido feito na época do mensalão.

Valor: O discurso contra direitos individuais do candidato do PSL tem equivalência no PT?

Martins: O PT contesta as instituições desde que foi criado. O PT se recusou a assinar a Constituição. Menospreza as instituições. Essa é a versão petista da história. O outro contesta direitos sabidos de quem não é seguidor do Bolsonaro, então vai cortar direitos individuais.

Valor: O senhor vê algum risco institucional?

Martins: Vai depender da vitalidade das instituições de um lado. De outro lado, da competência das vítimas potenciais desse possível retrocesso reagirem apropriadamente dentro das instituições. Não aceitar o jogo do confronto, aceitar o primado do direito. É a primeira etapa do enfrentamento.

Valor: Bolsonaro cresceu com discurso conservador, disruptivo e contra o PT. Quais são os problemas dessa candidatura, agora, no segundo turno e num eventual governo?

Martins: Bolsonaro tem problemas parecidos com os do PT e do Lula, mas com características próprias. Bolsonaro é uma pessoa, não um partido. O partido dele não é nada. Ninguém sabe direito o que é. Não tem doutrina, que o PT, de certa forma, tem. O Bolsonaro pode até ser eleito, é o mais provável. Mas vai ter de enfrentar o fato de que não será eleito pela maioria do povo brasileiro. Vai ficar um enorme vazio de pessoas excluídas das concepções dele, da doutrina dele e de seu vice. Essa grande massa fica onde nessa estrutura do governo? Porque ele não será mais candidato; será governo. Um pouco como o que ocorreu com o PT: uma população que se sentiu excluída, marginalizada e que está dando a resposta agora. Bolsonaro vai ter problemas muito parecidos.

Valor: Quais são os maiores?

Martins: Não tem um projeto de nação, são projetos repressivos. Bolsonaro não é sequer conservador. É um reacionário, que é outra coisa. Conservador é de uma tradição filosófica, que é antiliberal. Ele não é nem isso. O grande pensamento moderno nasce de um diálogo com a tradição conservadora. Bolsonaro nem sabe o que é isso. O que torna tudo pior. Se fosse conservador, pelo menos já existe uma contestação codificada. O Bolsonaro é só éle. Tem raiva. É do contra. Somando os dois lados, você vai ter impossibilidades, e a política é a arte do possível. É ver a partir dos problemas, dificuldades e contradições que nós temos, quais são as saídas objetivas. Nenhum dos dois têm a saída.

Valor: Alguém assumiu o papel de mediar o antagonismo?

Martins: O verdadeiro político compreende esses processos e propõe uma saída. Até agora o Bolsonaro não fez um discurso desativando a bomba de retardo de seus constituintes. Começam a se tornar agressivos. O outro lado também não. O pessoal acha que sair todo mundo dando cacetada vai resolver os problemas.

Valor: Qual o futuro do lulismo?

Martins: O PT não tem mais condições de continuar sendo o que sempre foi. Terá que passar por uma grande transformação. O erro do Haddad é não ter percebido isso, e não ter começado agora a desestabilização do PT.

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